Syriza não é solução: é problema

Há-de chegar o PREC à grega, com a agenda política de nacionalizações, expropriações e reversão das relações de produção.

1. Antes de tudo o mais, convém não confundir o Governo grego com a Grécia e não confundir o Syriza com os gregos. O Syriza e o seu parceiro de coligação são hoje o Governo grego e representam legitimamente o Estado grego, mas não são a Grécia nem são os gregos. Nem sempre esta distinção é feita, apesar de elementar em qualquer regime democrático e ainda mais necessária nos regimes não democráticos.

A confusão destes dois planos leva frequentemente à adesão a preconceitos sobre os povos e à construção de esteriótipos sobre as pessoas. Tudo o que não se recomenda nem a propósito de gregos, nem a respeito de outros quaisquer povos ou pessoas.  

2. A ascensão do populismo do Syriza e dos parceiros de direita radical que escolheu não é apenas o resultado da situação financeira, económica e social da Grécia. É também o resultado da profunda insatisfação com o establishment político, essencialmente partidocrático, assente em oligarquias familiares, como tive oportunidade de várias vezes dizer e escrever. E é também o resultado de opções europeias erradas que – mesmo abstraindo do conteúdo substancial e programático das medidas adoptadas –, em diversas ocasiões, ultrapassou o cânon sagaz do “não humilharás”. Escrevi isso aqui dezenas de vezes, ao longo destes anos, mas recordo em particular uma série de artigos do Verão de 2012. Falo de política; mais de política do que de economia. Mesmo discordando muito das análises e dos enfoques – de resto, bem diversos entre si – de Pacheco Pereira, de José Manuel Fernandes ou de João Carlos Espada, eles estão certos quando a tempo advertiram (e agora lembram) que a União Europeia e a sua liderança, por vezes mais pelo estilo do que pela substância, contribuíram para um “apoucamento” dos Estados e dos povos em situação de maior debilidade financeira. E que isso, inevitavelmente, reforçaria a posição dos populistas e dos nacionalistas mais empedernidos, aumentando de sobremaneira o sentimento antieuropeu e explorando velhos ódios e hostilidades de jaez nacionalista. Não se tratará tão só de um problema de estilo e método, de comunicação ou de relacionamento. Mas não haja dúvidas: o estilo, o método, a comunicação e o relacionamento poderiam ter ajudado muito. Em democracia e nas comunidades de direito, a forma conta. 

3. Dito isto, que não pode nem deve ser escamoteado e, por isso, ficou escrito nos dois primeiros pontos, importa não ter ilusões sobre o Syriza e sobre o que significam – ou podem significar – as suas primeiras opções.

4. O Syriza é um movimento de esquerda radical, com afinidades assumidas com o Bloco de Esquerda português. E, ainda assim, não hesitou em coligar-se com um partido de extrema-direita, xenófobo e hipernacionalista. Apesar da conhecida arrogância moral, de vezo moralista, da extrema-esquerda, Tsypras e os seus companheiros não hesitaram na coligação. Que diria em Portugal o BE se o PSD ou o PS, louvando-se no imperativo nacional, fizessem uma coligação com um partido daquele género?

5. A escolha desta coligação diz muito sobre o Syriza. Por um lado, mostra o seu pragmatismo revolucionário, na esteira de Lenine e na lição de Maquiavel: os fins justificam os meios. Para já, alia-se à direita populista, depois, assim que possa, há-de tentar desembaraçar-se dela. Por outro lado, mostra o quão radicado e radical é o seu “nacionalismo”, tão enraizado que chega a ser fundamentalista. Com uma retórica – primeiramente assumida, depois subliminar – antieuropeia, de nada lhe custa juntar-se a um discurso de direita claramente hostil à Europa. Nada de espantar, no contexto da tradição nacionalista e identitária grega, de cultura ortodoxa e de ambiente balcânico, com notória propensão militarista. Não, por acaso, no seu discurso inicial, Tsypras usou a expressão “derramar sangue”, que só pode ter uma de duas inspirações: ou a religiosa ou a militar. Talvez a nossa esquerda não tenha ainda percebido, mas o “syrizismo”, antes de ser um projecto de esquerda, consubstancia um desígnio “nacionalista”.

6. A definição de uma posição inicial favorável à Rússia, recebendo antes de todos o respectivo embaixador e lançando dúvidas e querelas sobre a questão ucraniana é também reveladora. Também ela demonstra o já aludido pragmatismo revolucionário: temos de apoiar quem nos apoia, nem que seja um ditador “nacionalista” e altamente “conservador”, que limita drasticamente a liberdade de expressão, que todos os dias reprime as minorias e que pisa perigosamente os umbrais da guerra da agressão. Mas é sabido e bem sabido que a Rússia de Putin financiou o Syriza e recebeu com dignidades de Estado os seus dirigentes. E que, de resto, não se coíbe de financiar toda a extrema-direita europeia, designadamente a Frente Nacional de Marine Le Pen. Frente Nacional que, por simples coincidência, se regozijou ruidosamente com a vitória do Syriza (e decerto ainda mais com a sua opção para a coligação governamental). Putin apoia activamente todos aqueles que se opõem à União Europeia e à unidade da Europa. Procura explorar as nossas brechas e fissuras e aproveita oportunamente os nossos erros. Mas o Syriza, quando pôde, escolheu Putin. O que, naquela lógica nacionalista e identitária, não nos deve surpreender. É ainda e sempre o eixo ortodoxo, com suposta sede na terceira Roma, que já assomara em Chipre e agora vibra e lateja no coração da Grécia (mesmo que pareça laica ou até laicista). Não podem nem devem ser sobrevalorizados, mas também não merecem ser desprezados os laços fundos da cultura, da mundividência, da civilização.

7. E há-de chegar o PREC à grega, com a agenda política de nacionalizações, expropriações e reversão das relações de produção. O maior risco grego não é o económico; é o político. A vitória do Syriza é um tema denso e complexo; precisa de mais espaço. Mas hoje fica a mensagem, que a muitos, mesmo de outros quadrantes, tirará alívio e esperança. Não tenhamos ilusões, o Syriza não é solução. É problema. 

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