Souviens-toi — Remember

Há uma semana comemorou-se no nosso país o Dia de Portugal. Permitam-me falar hoje de um outro 10 de junho.

Há setenta anos, e uma semana, uma divisão do exército nazi chamada “Das Reich” subia pelo interior da França, chamada a reforçar as linhas contra o desembarque aliado nas praias da Normandia. A Resistência e a sua guerrilha, o “maquis”, atrasavam-lhe a progressão. A “Das Reich” respondia com atos punitivos. Na véspera, a 9 de junho, enforcara 99 franceses na aldeia de Tulle, no Limousin. No dia 10 de junho chegou à aldeia de Oradour-sur-Glane, um pouco mais a norte.

Chamar aldeia a Oradour-sur-Glane pode ser enganador. Mesmo em 1944, a sua realidade não evocaria nada da pobreza das aldeias portuguesas. Embora ali morassem poucas centenas de pessoas, cerca de um milhar e meio vinha das quintas vizinhas fazer comércio. Oradour-sur-Glane tinha vários cafés, hotel, solicitador, seguradora, duas oficinas mecânicas, uma trintena de automóveis. Quase todas as casas tinham máquina de costura, fogão a lenha, algumas até fogão a gás. Mais surpreendente, a aldeia tinha uma linha de elétrico, que a ligava à capital provincial, Limoges, e de onde vinham regularmente turistas para fazer piqueniques à beira-rio. Por comparação, seria talvez como Colares, também já então ligada a Sintra por uma linha de elétrico.

Nesse dia de há setenta anos, por volta das duas da tarde, o exército nazi rodeou a aldeia e reuniu toda a população na praça principal. Poucos habitantes fugiram, por confiarem na explicação que lhes foi dada: era apenas um controle de rotina. Foram separadas as mulheres e as crianças dos homens. Estes foram distribuídos por vários lugares, uma centena numa granja, grupos menores aqui e ali. As mulheres e as crianças foram levadas para a igreja.

Até às seis da tarde, os soldados alemães (e alguns franceses, do antigo território da Alsácia-Lorena, recrutados à força) mataram metodicamente 647 pessoas, a tiro de metralhadora, pelo fogo e pela asfixia. Escaparam quatro homens da granja, uma mulher da igreja, e dois miúdos que tinham fugido quando as tropas chegaram (um deles era um dos quarenta refugiados franceses, também da Alsácia-Lorena, que tinham sido recebidos na aldeia).

Isto aconteceu noutros lugares, em Itália ou na Checoslováquia. O que torna Oradour-sur-Glane diferente é que quando a aldeia foi visitada por De Gaulle após a libertação, este decidiu mantê-la em ruínas e vazia, como memorial. E os sobreviventes levaram a opção a peito, até durante mais de uma década em que cortaram relações com o estado francês, por causa de uma amnistia votada pela Assembleia Nacional para os soldados alsacianos que tinham participado no massacre. Hoje é possível visitar Oradour esvaziada, ver os carros enferrujados, as máquinas de costura nos parapeitos da janela, saber onde era a dentista (uma mulher) ou a padaria. Dentro da igreja, um outro memorial, que já lá estava, aos mortos da Iª Guerra Mundial, que vingaram os mortos de 1870. Como numa boneca russa: tragédias que contêm tragédias.

À entrada e à saída, uma placa em francês e inglês, que diz “Souviens-toi / Remember”. Lembra-te. Recorda. Foi só há 70 anos. Não foi a civilização nem o conforto material que o impediu. O que pode este continente? Até onde chega?

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