Sou Charlie mas calma aí

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A Pessoa Que Não Sabe Bem Se é Charlie nasceu entre 7 e 8 de Janeiro de 2015, pouco depois dos atentados (17 mortos) cometidos por terroristas fundamentalistas islâmicos, de nacionalidade francesa, contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, e o mercado com produtos judeus Cacher. Desconhece-se a identidade dos progenitores, mas suspeita-se de que o pai, ou a mãe, já em 2001 assistira à queda das Torres Gémeas de Nova Iorque num misto de horror genuíno e secreta satisfação, já que a América andava a pedi-las. Foram os EUA que criaram de propósito o terrorismo islâmico (resultado da pobreza e do imperialismo), se não foi mesmo a América que atirou os aviões contra si própria para depois poder atacar à vontade o resto do mundo, há provas disso.

No entanto, o ADN desta nova criatura é tão complexo que a ordem do seu mapa genético deverá levar muitos anos a sequenciar, sem garantia de sucesso. Suspeita-se de que vários genes muito fortes se deslocaram para as extremidades esquerda e direita da fita de ácido desoxirribonucleico. É uma dupla hélice extremista, mas paradoxalmente disfarçada com fluidos de bom senso e de politicamente correcto. Tem um ADN ora cauteloso e cobarde, ora radicalmente paranóico.

Os bebés costumam nascer com um choro simples (“buááá!”), a Pessoa Que Não Sabe Bem Se é Charlie veio a este duvidoso mundo sibilando “no entanto, por outro lado, eu bem vos disse, e quem são estes agora para se atreverem a falar em liberdade de imprensa, etc.”. É provável que esta pessoa sofra do problema contemporâneo da “amálgama”. Não a de confundir, por exemplo, o islão inteiro com os fanáticos fundamentalistas assassinos, mas a amálgama-papa-azeda dos seus próprios preconceitos e inibições, quando estes colidem com qualquer coisa nova que acontece no mundo. Isto é que não estava previsto, portanto isto não foi nada disto.

A Pessoa Que Não Sabe Bem Se é Charlie ficou baralhada ao ver o impacto provocado pelo assassinato — dentro do local de trabalho — de um grupo de cartoonistas e jornalistas que, há muitos anos, desafiando ameaças, satirizavam em total liberdade autoral os poderes políticos e religiosos, mais a moral sexual burguesa. Espantou-se com o número de franceses que saiu à rua, milhão e meio só em Paris, de todos os credos e cores, na manifestação de 11 de Janeiro. Uma homenagem aos desenhadores mortos em combate pela liberdade, o direito ao humor e ao “mau gosto”, à existência do Estado laico, contra o terrorismo e a ditadura em nome de Deus. Na opinião desta pessoa, uma manifestação tão gigantesca transforma-se automaticamente em carneirada acéfala dirigida por interesses obscuros e hipocrisias. Para não dizer que, afinal de contas, teve pouco significado. Agora são todos Charlie, mas antes nem conheciam o jornal… E ver os flics, a bófia, do lado dos bons, é duro.

Tivemos acesso a algumas páginas do diário em que esta personagem complexa, contraditória, tentou ao longo dos últimos dias catalogar e contextualizar a questão “Je Suis Charlie”:

“Soube pela rádio que a redacção do Charlie Hebdo foi atacada por homens armados e que há vários mortos. Os autores do massacre gritaram Allahu Akbar, dizendo que tinham vingado a afronta dos desenhos satíricos de Maomé. Que horror! Como levaram estes pobres rapazes a pegar em armas, fanatizados pela cruel austeridade e racismo da nossa sociedade? É intolerável e temos de agir para evitar tais injustiças. Sinto-me muito culpado com esta falha. A Ana Gomes já enquadrou a situação no Tweeter.”

“Hoje estive a ler umas coisas sobre Voltaire e a questão da defesa da liberdade. Por outro lado, alguém lembrou que o Voltaire escreveu textos anti-semitas...” “Gostei de ver a mobilização dos cidadãos depois da tragédia. Comovedor. Por outro lado, espero que os humoristas tenham, com este apoio maciço, aprendido que há coisas mais importantes do que insultar as convicções dos outros, isso é que é liberdade. Para quê desenhar o Profeta se isso os enerva? Um pouco de respeitinho, ou sujeitam-se a levar com extremistas. Não em meu nome.”

“A quantidade de hipócritas políticos internacionais e criminosos que foi à manifestação! Se lá na terra deles não deixam as pessoas falar… E enganaram-nos porque nem sequer iam na verdadeira manifestação, mas centenas de metros à frente, não se misturaram com o povo. Por outro lado, se se tivessem misturado, é que eu ficava furioso.” “Houve um massacre enorme na Nigéria mas ninguém se manifestou a pedir uma intervenção internacional. Por outro lado, se houvesse uma intervenção internacional contra o Boko Haram era mais um acto de ingerência do imperialismo ocidental em África, não contem comigo.”

“Avolumam-se as provas de que houve marosca. A cabeça do polícia alegadamente morto no chão nem explodiu como é habitual. E porque é que os mataram só porque não se renderam? O que é certo é que levavam roupa verdadeira das tropas de elite francesa! Será que os islâmicos se infiltraram aí? O mais certo: o atentado foi cometido pelos serviços secretos franceses, em conluio com os extremistas de direita da Frente Nacional, para a Le Pen ganhar as presidenciais. Por outro lado, pode ter sido obra da Mossad israelita para mobilizar a Europa contra os árabes. No entanto, também é provável que tenha sido a CIA, que está feita com a Al-Qaeda do Iémen. Mas o mais razoável é ter sido o Presidente Hollande, que assim se aguenta no Eliseu e pode continuar os namoros escandalosos.” “Soube agora que o director do Charlie Hebdo costumava exclamar Allahu Akbar! quando falava com os colegas. Se era uma brincadeira parva, estava a pedi-las. Ou então o Charb era ele próprio um infiltrado do movimento islâmico, que se martirizou para mostrar ao mundo que ninguém brinca com o Profeta. Pista a investigar.”

“Desilusão. A edição feita pelos sobreviventes volta a meter-se com o Profeta na capa. Lá dentro há mulheres despidas, o Papa, fundamentalistas, sátiras contra a Merkel e o Le Pen nas manifestações do Je suis Charlie, e o diabo a sete. Até gozam com as teorias da conspiração. Não aprenderam nada. Andamos a lutar pela liberdade e é assim que nos pagam?”

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