Soldados russos marcham em direcção ao século XXI

O crescimento económico dos últimos anos está a ser aproveitado por Moscovo para reformar as suas forças armadas e há um plano para a próxima década. O urso pode voltar a assustar, mas isso custa muito dinheiro.

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Vladimir Putin prepara uma reforma das Forças Armadas MAXIM MARMUR/AFP

Desde o século XVII que os soldados do exército russo utilizam simples panos a envolver os pés, em vez das meias comuns. Durante a Guerra dos Sete Anos, as Invasões Napoleónicas e ainda nas duas guerras mundiais, eram os portyanki que acomodavam os pés dos homens que combateram pela Mãe Rússia, fosse em nome do czar ou do proletariado. Mas a sua existência tem os dias contados. Até ao final do ano, os portyanki vão ser postos de lado, por ordem expressa do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e isto pode ter uma importância crucial para o futuro do xadrez geopolítico mundial.

“Precisamos de rejeitar por completo este conceito de forças armadas”, anunciou Shoigu, em Janeiro, referindo-se ao uso do portyanki. As declarações do ministro da Defesa têm uma razão muito mais profunda do que a simples utilização de um pedaço de pano à volta dos pés dos soldados russos. Desde 2007 que Moscovo está empenhado numa reforma total da realidade militar russa, considerada ultrapassada e inadequada ao século XXI. Até 2020, o Governo russo prevê gastar 23 biliões de rublos (cerca de 520 mil milhões de euros) no seu programa militar.

“Não podemos tentar ninguém com a nossa fraqueza”, defendia Vladimir Putin, ainda em plena campanha para a reeleição presidencial, em Fevereiro de 2012, num artigo no jornal estatal Rossiyskaya Gazeta. O agora Presidente russo lamentava “os anos em que o Exército e a Marinha eram regularmente subfinanciados”, numa referência ao período após o colapso da União Soviética.

A verdade é que as intenções passaram aos actos, pelo menos em termos de gastos. Nos últimos anos, em contraciclo com a tendência nos países membros da NATO, a Rússia tem aumentado o seu orçamento militar, atingindo o top 3 em 2009, com gastos na ordem dos 53 mil milhões de euros, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo (SIPRI, em inglês). E a factura continua a crescer: em 2012, a Rússia gastou mais de 66 mil milhões de euros.

Chegar aos 425 mil soldados
Os ambiciosos planos do Kremlin passam por uma reformulação do seu sistema de defesa anti-aérea, o desenvolvimento de uma nova linha de caças, o Sukhoi T-50 (equivalente ao americano F-35C), a compra de 400 mísseis balísticos intercontinentais e de centenas de submarinos nucleares. Ainda este mês, durante uma feira de tecnologia de ponta, a Technoprom, o ministro-adjunto da Defesa, Dmitry Rogozin, utilizava um discurso que parecia quase tirado de um filme de ficção científica. “O nosso soldado deve conseguir alcançar os alvos sem ser atingido por fogo inimigo. É para isso que estamos a trabalhar agora”, assegurou Rogozin.

A Rússia dá cartas também no campo da exportação de armamento, com um volume de negócios de cerca de nove mil milhões de euros no ano passado, com a França e a China entre os principais compradores, de acordo com a revista Foreign Policy. É nos Montes Urais que todos os anos, desde 1999, é celebrado o poderio do complexo militar-industrial russo. Na edição deste ano, que decorreu no final de Setembro, o primeiro-ministro, Dmitry Medvedev, assistiu ao desfile dos novíssimos tanques com o nome sugestivo de Terminator.

Uma batalha ainda não é ganha sem soldados e o Kremlin sabe disso. É por isso que a demografia é uma das dores de cabeça de Putin, que já em 2006 dizia ser “o problema mais urgente na Rússia”. A queda da natalidade e a alta taxa de mortalidade (a esperança média de vida dos homens é de 64 anos) levaram a um saldo populacional negativo nos últimos 20 anos. De uma população de 148,6 milhões em 1993, a Rússia passou para perto de 142 milhões. A taxa de mortalidade masculina, de 14 em cada mil pessoas (nos EUA é de oito em mil), coloca a Rússia acima da média dos “países menos desenvolvidos”, de acordo com a Divisão Populacional da ONU.

A solução, em termos militares, tem sido o abandono progressivo do recrutamento tradicional, que consistia no serviço militar obrigatório de dois anos, uma herança dos tempos do Exército Vermelho. Progressivamente, a duração do serviço militar foi reduzida para um ano e depois aumentou-se o número de casos excepcionais. O novo paradigma é o da crescente profissionalização dos soldados. O exército russo contava, em 2012, com cerca de 170 mil soldados contratados, mas a ideia é chegar aos 425 mil até 2020.

Ambicioso como é, o programa militar russo não é, contudo, imune a críticas (ao contrário dos soldados invencíveis de Rogozin). As apreciações negativas do ex-ministro das Finanças, Alexei Kudrin, custaram-lhe o cargo, no final de 2011. O futuro parece ter vindo a dar-lhe razão. Em Maio, o Kremlin anunciou o adiamento de programa por dois ou três anos. O que parece certo é que não será abandonado, nem que não seja por razões de consumo interno. Uma sondagem do Centro Levada mostrava, no mês passado, que 46% dos russos eram favoráveis a um aumento da despesa militar, mesmo que isso levasse a um recuo económico.

O despertar do urso
Em plena campanha eleitoral para a Casa Branca em 2012, o candidato republicano Mitt Romney afirmou que a Rússia era, “sem sombra de dúvida, o nosso inimigo geopolítico número um”. A constatação foi ridicularizada um pouco por todo o mundo e catapultou Barack Obama para uma reeleição fácil. Espirituoso, Obama respondeu que “os anos 1980 estão a pedir de volta a sua política externa porque a Guerra Fria já terminou há 20 anos”.

Numa altura em que a luta contra o terrorismo global, a ameaça nuclear iraniana e o poderio económico da China, chamam a atenção de Washington, a Rússia vai traçando, outra vez, o seu rumo na geopolítica mundial. Se por um lado, a intervenção de Putin na guerra civil síria constituiu um exemplo de um bom manobrar da soft-politics pelo Kremlin, por outro, militarmente a Rússia não está menos activa.

Neste Verão, a marinha russa participou em manobras militares conjuntas com a China, no Pacífico, numa operação sem precedentes. Ao mesmo tempo, as forças terrestres da Comunidade de Estados Independentes (organização liderada pela Rússia, que integra antigos estados soviéticos) ensaiaram movimentações contra-terroristas num campo de treinos. A completar o quadro, 160 mil soldados, mil tanques, 130 aviões e 70 navios participaram no maior exercício militar russo desde o final da Guerra Fria, na Sibéria. Elias Groll, editor da Foreign Policy, avisa: “A mensagem é bastante inequívoca. Não se metam com este urso russo”.
 

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