Socialismo ou barbárie

Castoriadis não viveu a tempo de assistir às últimas grandes crises do capitalismo, mas afirmava em 1996 que havia o perigo de o século XXI se tornar o século da verdadeira barbárie.

No período em que trabalhei na Comissão Europeia em Bruxelas, de Janeiro de 1989 a Agosto de 2002, um dos mais enriquecedores da minha vida, sob todos os aspectos, houve nos anos 90 algumas conferências de destacadas figuras internacionais, organizadas pelo Comité do Pessoal, de que sublinharei as de Cornelius Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit. Aquele organismo é constituído por alguns elementos do pessoal, oriundos dos vários sindicatos existentes, que à minha chegada eram 6, para a direcção dos quais havia eleições de dois em dois anos. Tal como nas organizações alemãs, cujo exemplo mais conhecido em Portugal é a Auto Europa, o Comité de Pessoal é consultado sobre um grande número de assuntos com relevância para a instituição, num diálogo trabalhadores-empresa, neste caso a Comissão Europeia.

Foi por isso para mim uma surpresa, e para outros, esta democracia empresarial que não existia no Portugal de então, como julgo que continua a inexistir. Para mim, que vinha do sector automóvel, General Motors e Renault Portuguesa, (18 anos repartidos pelas duas empresas), só existiam as consequências do que designarei por “golpe de Estado do 25 de Novembro de 1975”: repressão directa e indirecta sobre os trabalhadores, especialmente aqueles que se tinham distinguido durante o processo revolucionário, redução de direitos, e a nível individual inúmeras depressões psíquicas e até mudanças nos hábitos de vestir e de se apresentar, com adopção do uso da gravata, cortes de barbas e bigodes para disfarçar o passado recente de revolucionários, como aconteceu durante a Guerra Civil de Espanha!

Sobre Daniel Cohn-Bendit, que fez a sua conferência em finais de 1994, depois de ter sido eleito em Junho para o Parlamento Europeu, referirei somente a sua afirmação final de que a revolução do Maio de 1968, (que aconteceu enquanto eu viajava no navio NIASSA para cumprir uma comissão militar em Moçambique), talvez tivesse servido apenas para libertar as estudantes francesas do espartilho sexual de que eram vítimas na conservadora sociedade gaullista de então! Mas claro que não foi só isso. Uma boa história do Maio de 1968 está em Daniel Cohn -Bendit, Forget 68, Editions de l’Aube, 2008, recolha de uma longa entrevista sua a dois jornalistas franceses.

Quanto ao filósofo e activista grego Cornelius Castoriadis, (1922-1997), emigrado em França pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o impacto da sua presença pessoal correspondeu a uma experiência única e rara, que só os grandes espíritos e homens ou mulheres de acção conseguem provocar. Fundador, com Claude Lefort, em 1949, da revista Socialisme ou Barbarie, que iria ser publicada até 1967, era um crítico impiedoso do estalinismo e da União Soviética, ao contrário de Sartre, (embora seu companheiro na acção), que, depois do XX Congresso do PCUS, em 1956, passou a apoiar a política externa da URSS, no contexto da intervenção dos Estados Unidos no Vietname, tendo sido até um dos principais impulsionadores do Tribunal Bertrand Russel, com o filósofo do mesmo nome, destinado a julgar os crimes de guerra dos americanos.

A conferência de Castoriadis, pronunciada em 24 de Fevereiro de 1994, intitulava-se “As guerras na Europa”. Estava-se então em pleno conflito nos Balcãs, resultante da desintegração da República Socialista Federativa da Jugoslávia. E, com uma referência à Antiguidade Clássica, que os gregos amiúde sabem utilizar, remontou ao episódio mítico do Rapto das Sabinas pelos romanos como uma das justificações para a guerra. Utilizando também uma explicação psicanalítica para o surgimento do racismo entre as populações das diferentes etnias e religiões que até então viviam pacificamente na ex-Jugoslávia. Muito mais tarde, descobri mais e melhor da obra de Cornelius Castoriadis, através de uma edição da Katz, de Buenos Aires, 2006, que adquiri em Quito, Equador, numa das diversas viagens à América Latina para participar em congressos, depois de regressar de Bruxelas. Intitula-se a obra Una sociedad a la deriva, recolha de entrevistas, debates e artigos do autor, traduzida do francês, Editions du Seuil, 2005. Aqui, Castoriadis abarca toda a problemática política das sociedades do nosso tempo, de um ponto de vista dos trabalhadores, tanto a dos países capitalistas como do “socialismo real”, que se praticou na União Soviética e na Europa de Leste. Desde o artigo, de 1974, “Porque já não sou marxista”, em que conclui que a profecia de Marx não se realizou, a saber, que as contradições insanáveis do capitalismo iriam provocar o desenlace final desse sistema e a passagem qualitativa para o socialismo. Até, 20 anos mais tarde, em Maio de 1991, afirmando numa entrevista que a Primavera dos Povos da Europa de Leste, então em curso, era uma rebelião vitoriosa, através de manifestações pacíficas contra regimes armados até aos dentes, que há muito condenava como sendo um capitalismo de estado burocrático, não estando ao serviço dos trabalhadores. Mais tarde, tendo ainda assistido à ascensão do poder hegemónico do neoliberalismo, introduzido nas sociedades ocidentais por Reagan e Thatcher, condenou a passividade da social-democracia e a sua submissão aos cânones vigentes. De tal modo, afirmou, que não se consegue distinguir diferenças nas políticas defendidas pelos partidos conservadores e os socialistas.

Defendendo de início o modelo de autogestão das unidades de produção e das próprias sociedades, como era apanágio dos que criticavam pela esquerda a União Soviética, desde há décadas, passou em seguida a defender o conceito de sociedades autónomas, com indivíduos também autónomos, capazes de gerir os próprios aglomerados em que vivem. Mas curioso é também referir que por alturas do debate sobre o Tratado de Maastricht, que em França esteve em risco de ser chumbado, como seria em 2005 o Tratado Constitucional, teve a presciência de assinalar bem cedo que uma União Económica e Monetária não seria possível sem uma União Política. E numa intervenção de Março de 1997, poucos meses antes de morrer, afirmava que o capitalismo é incompatível com a verdadeira democracia.

Castoriadis não viveu a tempo de assistir às últimas grandes crises do capitalismo, especialmente a despoletada em 2007/2008, e ao ressurgimento das esperanças de ultrapassagem da barbárie que se vive actualmente. Mas importante também é notar, como crédito à sua capacidade prospectiva e de interpretação da sociedade, que numa entrevista a António Guerreiro, no Expresso, no Verão de 1996, confessava que havia o perigo de o século XXI se tornar o século da verdadeira barbárie. (Como é sabido, a frase Socialisme ou barbarie, atribuída a Rosa Luxemburgo, faz agora 100 anos, três anos antes de a revolucionária ser assassinada por forças militares em Berlim, a 15 de Janeiro de 1919).

Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia

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