Sírios não distinguem os aviões russos dos raides dos EUA ou da França

A coligação criada por Washington reúne 65 países, mas 95% dos bombardeamentos contra os jihadistas têm sido americanos. Russos erram mais os alvos e um terço das suas vítimas são civis.

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Um Tornado da Força Aérea do Reino Unido REUTERS/Russell Cheyne

O combate contra os jihadistas do autodenominado Estado Islâmico ganha adeptos todos os dias. Esta semana, Alemanha e Reino Unido (o Parlamento britânico autorizou nesta quarta-feira à noite a campanha militar) aceitaram enviar aviões e começar a bombardear alvos na Síria – os britânicos já o faziam, mas só no Iraque –, semanas depois de a França ter reforçado a sua presença militar na região, depois dos atentados de Paris.

Washington anunciou entretanto que vai enviar uma centena de membros das forças especiais para coordenarem estes ataques no Iraque – já decidira enviar 50 para a Síria e os primeiros chegaram a Kobani.

Estes reforços à coligação criada inicialmente pelos Estados Unidos, no Verão passado, seguem-se ao início do envolvimento da Rússia no conflito, no fim de Setembro. Apesar dos esforços de Paris para juntar Moscovo à coligação internacional e de alguns raides coordenados entre franceses e russos, a verdade é que o país presidido por Vladimir Putin continua a agir por contra própria. E várias vezes ataca grupos anti-regime, alguns dos quais apoiados pela coligação dos EUA, em vez de atingir apenas alvos do Daash (como os árabes e grande parte dos governos se refere actualmente ao Estado Islâmico).

Moscovo tem uma base na Síria, na província de Latakia, e coordena os seus esforços com o regime de Bashar al-Assad. Segundo informações obtidas esta quarta-feira pela AFP, forças militares russas e sírias estão há duas semanas em treino no norte de Latakia e preparam-se para lançar uma ofensiva contra os rebeldes da oposição na província de Idlib, no Noroeste do país.

De acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos, uma ONG ligada à oposição e com sede em Londres, com uma rede de activistas e médicos no terreno, os ataques aéreos russos fizeram 1502 mortos em dois meses, incluindo 485 civis. As restantes vítimas dividem-se entre o Daash (419) e outros grupos de combatentes.

Para aumentar a confusão, num conflito que tem no terreno mais de 100 grupos de dimensões que vão das poucas centenas às dezenas de milhares, há a participação do Irão e do Hezbollah, o grupo xiita libanês que os iranianos apoiam no Líbano, ao lado do Governo de Assad. Há tropas iranianas na Síria (os seus funerais juntam pequenas multidões no Irão) e muitas mais ainda estão no Iraque, onde o Irão apoia o Governo de maioria xiita na luta contra os extremistas e financia milícias locais.

Na segunda-feira, os Emirados Árabes Unidos tornaram-se no primeiro país árabe a disponibilizar-se para enviar militares para uma força terrestres – o país foi um dos primeiros a integrar a coligação dos EUA e, num primeiro momento, foi o segundo mais activo nos raides, a seguir à França, mas diminuiu entretanto muito a sua colaboração. Aliás, os países do Golfo em geral fizeram-no, deslocando recursos para a guerra no Iémen, onde apoiam os sauditas contra rebeldes xiitas que acusam o Irão de apoiar.

Washington fala de uma coligação de 65 países, mas a verdade é que 95% dos ataques aéreos têm sido realizados pelos norte-americanos. França, Canadá, Austrália, Bahrein, Bélgica, Holanda, Arábia Saudita, Jordânia e Emirados são os únicos outros países que se sabe já terem participado em ataques, alguns no Iraque, outros na Síria, com outros a disponibilizarem aviões de vigilância (Itália), munições (República Checa), bases ou pontos de reabastecimento (Grécia e Chipre) e os restantes dinheiro ou armamento para os chamados moderados. Os alemães participavam até agora com unidades de treino no Iraque.

Falta aqui ainda a Turquia, que cede bases e já atacou os extremistas mas sozinha. O Egipto, país de que agora se fala muito para integrar uma futura força muçulmana, atacou o Estado Islâmico na Líbia em resposta à execução de egípcios que ali trabalhavam.

Estratégia e riscos

 “Esta é uma coligação de 65 países em que só uns nove estão a fazer alguma coisa”, diz, citado pelo Washington Times, Anthony Cordesman, do think tank Center for Strategic International Studies de Washington. Cordesman considera normal que os aliados dos EUA não colaborem mais, até porque a estratégia nunca foi bem definida. “Não consigo lembrar-me de um único documento público que explique de alguma forma coerente a estratégia que temos para esta guerra aérea ou que diga o que é que falta fazer.”

Os bombardeamentos foram essenciais para libertar Kobani, na Síria, ou impedir a queda da capital iraquiana, Bagdad. Mas não chegarão para derrotar um grupo que em Mossul (Iraque), Deir Ezzor ou Raqqa (na Síria) vive entre os civis. Todas as acções militares aéreas acabam por fazer vítimas entre a população, mais ainda se do terreno não chegam boas informações – um ataque dos EUA em Alepo, em Maio, matou mais de 60 civis, mais de metade crianças – e isso pode radicalizar ou alienar parte da população.

Hassan Hassan, um perito sírio da Chatham House, nota que os sírios não sabem distinguir um bombardeiro enviado por Moscovo, aliado de Assad, dos aviões de guerra britânicos ou franceses. “Isto poderá criar apoio para o Estado Islâmico, ou pelo pelos criar mais indiferença nas pessoas”, diz, citado pelo Guardian. “São estes os riscos, as consequências não esperadas.”

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