Síria: é isto uma guerra civil?

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Face à repressão, a oposição já se transformou num movimento insurreccional em fase de guerrilha Joseph Eid/AFP

Que nome se deve dar à escalada de violência dentro da Síria, país onde a repressão do regime Assad já matou milhares de pessoas? Três especialistas dividem-se neste tema.

Desde o início da revolta na Síria, há 15 meses, morreram pelo menos 12.600 pessoas, a esmagadora maioira vitíma da violenta repressão do regime de Bashar al-Assad. Com uma oposição cada vez mais armada, a situação parece estar a evoluir rapidamente para um conflito que opõe duas facções, que lutam pelo controlo político do país. Já é uma guerra civil? A diplomacia ainda diz que não.

O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, afirmou na semana passada que o “perigo de uma guerra civil em larga escala” é “iminente e real”. O enviado especial da ONU, Kofi Annan, disse na mesma altura que a Síria está quase numa guerra civil. A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, afirmou por seu lado que o veto russo no Conselho de Segurança da ONU – opondo-se a uma intervenção armada no país – “ajudará a contribuir para uma guerra civil” no país. E mesmo o Presidente russo, Vladimir Putin, indicou que se começam a ver “germes de uma guerra civil” e que isso é “extremamente perigoso”. O que é que falta para o problema sírio ser classificado como uma guerra civil?

James Fearon, director do departamento de Ciência Política da Universidade de Stanford e perito no tema das guerras civis, diz por email ao PÚBLICO que “de acordo com os padrões tipicamente usados pelos cientistas políticos e pelos sociólogos que estudam as guerras civis, o conflito na Síria já pode ser qualificado de guerra civil há algum tempo”. Tem, por isso, uma opinião diferente dos diplomatas e líderes mundiais, que resistem a classificar o problema sírio como tal.

Na acepção de Fearon, “uma guerra civil é um conflito violento entre grupos armados que lutam pelo poder central de um país ou pelo controlo de uma região; que mata uma quantidade ‘significativa’ de pessoas e que é quase completamente unilateral”.

Aquilo que se passa na Síria é uma tentativa de controlo do poder de Damasco que opõe, de um lado, o exército regular do regime de Bashar al-Assad (e também milícias não regulares, leais ao Presidente, as shabiha) e, do outro, o movimento revoltoso anti-regime que se unificou em torno da bandeira do Exército de Libertação da Síria.

Quanto a vítimas mortais, os 12.600 mortos contados pela ONU desde Março de 2011 será “uma quantidade ‘significativa’ de pessoas”? Fearon admite que este conceito pode ser arbitrário. Muitos académicos defendem, de forma mais rigorosa, que se morrerem 1000 pessoas por ano de conflito, então isso – a par de os outros critérios – é indicador de uma guerra civil.

Também de acordo com Mariano Aguirre, director do Norwegian Peacebuilding Resource Centre (NOREF) – um organismo governamental norueguês especializado nas políticas de construção da paz – aquilo que se está a passar na Síria é já uma guerra civil. Este especialista referiu, em declarações ao PÚBLICO, que tendo em atenção o número de mortos e o facto de a oposição armada parecer estar cada vez mais organizada, a situação no terreno ficou transformada numa guerra civil.

Insurreição em fase de guerrilha

Opinião diferente o general Loureiro dos Santos, perito em estratégia militar que, em declarações ao PÚBLICO, prefere chamar-lhe “movimento insurreccional já na fase da guerrilha”. Fica a dúvida: porque é que a ONU resiste em falar de guerra civil? Uma resposta possível é que se a guerra civil não for tida como um facto consumado, então a comunidade internacional poderá estar mais disposta a redobrar esforços diplomáticos para evitar esse cenário.

De acordo com um artigo recente do “Christian Science Monitor”, este tabu em torno da expressão “guerra civil” pretende dar fôlego ao plano de paz de Kofi Annan que, apesar de ter entrado em vigor no passado dia 12 de Abril, continua a ser letra-morta. Qualquer alternativa a este plano de paz será mais cara e arriscada, podendo mesmo envolver os vizinhos da Síria numa guerra regional.

Mariano Aguirre alerta para os perigos de uma solução não-negocial: “Se as negociações permanecerem bloqueadas, Bashar al-Assad vai continuar a matar, a oposição vai recebendo armas, a missão de Annan [com cerca de 300 observadores no terreno] não poderá fazer mais do que constatar o desastre e é possível que se chegue a uma intervenção militar aérea. As suas consequências podem ser imprevisíveis, tanto em número de vítimas civis como no impacto regional”.

O general Loureiro dos Santos prevê, por seu lado, que se esta fase de guerrilha se aprofundar, o país poderá mergulhar numa “situação anárquica” e envolver os players regionais: “O apoio cerrado do Irão, já em curso (...) acentuará a influência iraniana na Síria (em ligação com o Hezbollah libanês), que se transformará num satélite de Teerão, cujo ‘império’ se consolidará, desde o Afeganistão a Leste ao Mediterrâneo a Oeste”.

Chamar a NATO?

Se a diplomacia resiste ao termo “guerra civil”, os actores regionais também a rejeitam, incluindo o próprio Bashar al-Assad. Para este ditador que governa a Síria há 12 anos, os seus opositores não são uma força organizada mas antes simples terroristas. Admitir que o país está em guerra civil seria admitir que a oposição armada se transformou num movimento organizado com forte apoio popular.

Do lado oposto da barricada, os opositores ao regime também não gostam da expressão porque põe a descoberto não uma sublevação popular maciça e idealista com o selo “Primavera Árabe” mas antes uma massa variada de grupos e figuras - uns internos e outros externos - que se reuniu em torno de um objectivo: derrubar Bashar al-Assad.

Independentemente de o termo “guerra civil” se aplicar ou não ao que se passa na Síria, a preocupação imediata da comunidade internacional é desbloquear o actual impasse, especialmente após os massacres de Houla e de Qubair, onde morreram centenas de pessoas, crianças incluído. O que esperar a partir de agora?

Mariano Aguirre constata que “o mandato de Annan tem sido fraco devido à falta de cooperação da Rússia e da China no Conselho de Segurança da ONU (...) prevendo que um dia essas medidas [pressões, sanções e uma eventual intervenção militar] possam ser aplicadas contra si por situações como as que se passam no Tibete e no Cáucaso”.

O mesmo especialista refere, por isso, que “uma possibilidade é a França, os EUA e o Reino Unido decidirem actuar militarmente fora de uma resolução da ONU. Ou seja, usar a NATO e passarem por cima da ONU dado o bloqueio da China e da Rússia [a uma intervenção militar]”. Para Aguirre, uma coisa é certa: o plano de Annan corre o risco de se afundar se não houver mais pressão sobre a Síria.

Para o general Loureiro dos Santos, “actualmente, as partes em confronto estão convencidas de que conseguirão a vitória recorrendo ao uso da força (...) o que explica a dificuldade em pôr fim ao conflito através de negociações”. “A verificar-se o aprofundamento da insurreição (...) uma das partes começará a estar mais disponível para uma solução negociada, que lhe permita salvar o que considere essencial”, sustenta.

“No caso da insurreição se alargar, poderá abrir-se a oportunidade de uma ‘solução à Iémen’, apoiando a saída de Bashar al-Assad e a sua substituição por alguém que garanta condições minimamente satisfatórias para ambas as partes. A caminhar-se para esta solução, evitar-se-ia a substituição do regime sírio por um poder sunita extremista influenciado pela al-Qaeda, cujos jihadistas se encontram na linha da frente dos insurrectos, tal como já aconteceu na Líbia”, estima ainda o general.

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