Sinais de tempestade na Europa

São muitos os sinais de que a Europa tem de funcionar de outra maneira. O que já não se esperava era que, de repente, a crise do euro pudesse estar de regresso.

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1. Em finais dos anos 1990 Bill Clinton resolveu lançar um grupo de reflexão que reunisse os governos de centro-esquerda europeus e mais algum de outras paragens para debater uma agenda para a “governança mundial”. Tony Blair, António Guterres ou Gerhard Schroeder mas também Fernando Henrique Cardoso faziam parte do grupo que se chamou a si próprio “Progressive Governance”.

A globalização acelerava, mesmo que ainda fosse vista como uma vantagem ocidental. O tempo era ainda o da vitória das democracias na Guerra-Fria, que abriria as portas ao presságio de Fukuyama.  O objectivo era definir uma agenda política que incluísse os grandes desafios que o mundo só poderia enfrentar em conjunto. O risco de pandemias era um dos pontos, assim como o combate ao “digital divide”, à pobreza e às alterações climáticas.

Entretanto, o mundo mudou com o 11 de Setembro e a “guerra ao terror” americana. A globalização económica traduziu-se na emergência de novas grandes potências, nem todas amigas do Ocidente. A crise financeira abalou profundamente as economias ricas tirando o brilho ao seu modelo. A Europa entrou na mais grave crise da sua vida, da qual ainda não se libertou. Obama acreditou que era preciso outra forma de liderar o mundo e encontrou imensas dificuldades. Os efeitos da crise económica e a crescente desordem internacional deixaram para trás a agenda de Clinton.

Quando a epidemia do ébola se manifestou em alguns países da África Ocidental sem qualquer capacidade de enfrentá-la, as democracias prestaram-lhe muito pouco atenção. Estavam a braços com um outro vírus terrorista que ameaçava fazer desabar o Iraque e alterar o mapa político do Médio Oriente. Europeus e americanos fizeram aquilo que hoje têm tendência para fazer: não é nada connosco, é apenas mais um problema deles. Só acordaram quando alguns casos de ébola lhes entraram pela casa dentro e constataram que não estavam sequer preparados para resolvê-los. O que se devia ter feito, hoje já toda a gente sabe: combater o ébola na sua origem com os meios necessários. Os EUA foram os primeiros a reagir, recorrendo a meios militares para actuarem no terreno com a sua eficácia habitual. A Europa só agora se propõem reagir mas ainda não se sabe bem como. Será tarde demais? Ainda ninguém sabe. Mas o que se sabe já é que o ébola está a espalhar o mesmo tipo de medo e de desconfiança que o terrorismo desencadeou na década passada, com os atentados em Londres e em Madrid, depois das Torres Gémeas. E com os mesmos sintomas: a histeria contra os outros, as medidas drásticas para fechar as fronteiras. Na Europa é um medo que se junta ao outro, contra os imigrantes. Nos EUA, é cada vez mais difícil a Obama explicar que a solução não se resolve fechando fronteiras mas combatendo o vírus no local do seu nascimento. Em 2001, foi a identificação do terrorismo com os cidadãos de origem árabe. Agora a desconfiança ameaça quem tem origem africana, alimentando ainda mais um sentimento de xenofobia que, aqui como do outro lado do Atlântico, está a engrossar os partidos populistas e nacionalistas de todos os matizes. Há quem defenda o isolamento desses países africanos, onde a falta de estruturas e de meios levam a cenários de uma violência e de uma tristeza infinitas, cortando as ligações aéreas ou quaisquer outras. O medo junta-se ao outro medo da imigração criando um caldo de cultura que apenas pode levar ao desastre. E o que se vê, mesmo em países tão abertos ao mundo como o Reino Unido, é acedência crescente dos líderes democráticos às bandeiras xenófobas dos nacionalistas. Cameron acha que se gritar mais alto do que Farage sobre a imigração ou sobre a Europa terá alguma coisa a ganhar. Pura ilusão.

2. São muitos os sinais de que a Europa tem de funcionar de outra maneira. O que já não se esperava era que, de repente, a crise do euro pudesse estar de regresso, traduzindo-se numa convulsão inesperada dos mercados, que fez cair as bolsas e voltar a disparar os juros da dívida pública dos países do Sul. Porquê? Não há uma só razão nem um só culpado. Mas há um encadeamento de factores que conduziram a esta nova vaga de desconfiança. O primeiro dos quais é, com certeza, a perspectiva “japonesa” que começa a ser o mais provável destino europeu, se nada, entretanto, mudar. A nova e patente desunião europeia sobre como lidar com a crise do euro terá dado também o seu contributo. Quando Merkel veio dizer na quinta-feira que não haveria a mínima alteração à estratégia da austeridade destinada a fazer cumprir o PEC e o novo Tratado Orçamental, não era apenas a Itália e a França que as suas palavras visavam. Na mira de Berlim estão também as duas instituições fundamentais da União: o BCE e a Comissão. O primeiro porque as medidas não-convencionais para combater a deflação e estimular a economia anunciadas por Mario Draghi não são bem vistas em Berlim. Vale a pena lembrar que o presidente do BCE está a ser ouvido no Tribunal do Luxemburgo na sequência de uma acção do Tribunal de Karlsruhe sobre a legalidade da sua política monetária face aos tratados. Só depois o tribunal alemão se pronunciará. Por seu lado, Jean-Claude Juncker, com a sua hábil engenharia para constituir uma Comissão mais política e mais equilibrada, tem insistido na necessidade de se carregar no acelerador no crescimento. E já nem vale fazer o papel de cãozinho de Pavlov, debitando automaticamente os argumentos da estratégia alemão, porque nem Manuel Valls, nem Matteo Renzi podem ser descartados como os eternos esbanjadores do Sul. O governo francês está a defender reformas que seriam impensáveis há pouco tempo e ainda não cedeu à pressão da esquerda ou da rua. Renzi não tem propriamente um problema do défice, que está abaixo dos três por cento, mas tem um problema da dívida e sobretudo da competitividade da economia italiana. As iniciativas de ambos devem ser analisadas nas suas circunstâncias e não pura e simplesmente descartadas por meia dúzia de ideias-feitas que a Comissão está habituada a debitar.

Outra razão invocada pela imprensa europeia e norte-americana para este surto de crise tem a ver com o dubitativo resultado dos testes de stress que o BCE, na sua qualidade de novo supervisor, levou a cabo nos bancos europeus e se prepara para divulgar em breve. O New York Times lembrava na sexta-feira que, em 2011, ainda a cargo dos supervisores nacionais, a fiscalização dos bancos foi uma mera encenação para dizer que estava tudo bem. O que está hoje a fazer o BCE foi aquilo que os EUA trataram de fazer logo em 2009, separando o trigo do joio e ajudando ao relançamento da economia num clima de maior confiança. (A propósito, vale a pena lembrar que o défice americano tem vindo sempre a descer e está hoje nos 2,8 por cento, em parte pela contenção das despesas em parte pelo crescimento da economia). O FMI alertou que, provavelmente, apenas 30 por cento dos bancos da zona euro estão em condições e que os testes de stress podem revelar algumas surpresas desagradáveis (em contrapartida, 80 por cento dos bancos americanos estão de boa saúde).  Os mercados também estarão a antecipar estes resultados menos favoráveis sobre o sistema financeiro europeu. Do mesmo modo, Itália, Espanha, Grécia, Eslovénia e Eslováquia já estão com crescimento negativo dos preços. Seria loucura ficar de braços cruzados.

Mas, desta vez, uma coisa é certa: bem ou mal, a chanceler já não está em condições de ditar a sua receita e esperar ser obedecida. Alguém escreveu recentemente que Merkel apenas mudaria quando batesse com a cabeça no muro. Espera-se que isso aconteça o mais depressa possível. A prova dos factos, desta vez, não está a seu favor. Culpa dela? Culpa dos outros? Pouco interessa. O caminho não está a levar aos resultados previstos e é boa prática tentar perceber porquê e alterar o itinerário em função disso.

 

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