Simone de Beauvoir e Israel

Por muito que possamos compreender os motivos de Israel, as soluções dos seus Governos não correspondem à melhor forma de os judeus viverem na região num futuro de tempo longo.

Há uns meses, devido a um momento infeliz da presidente da Assembleia da República, tornou-se conhecida da generalidade dos portugueses uma frase de Simone de Beauvoir sobre o horror nazi durante a Segunda Guerra Mundial: "Não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes". Hoje, quando o número de vítimas na Faixa da Gaza ascende já a várias centenas, vale a pena reflectir sobre a ideia da escritora francesa.

É certo que não podemos olhar para Israel – e para a região – como olhamos para a Europa e o Ocidente em geral. Seria o mesmo que usar óculos de ver ao perto para ver ao longe. Não só existe toda uma história antiga, como a concepção de segurança e de território é completamente diferente. Para os israelitas, rodeados de inimigos por todos os lados, a segurança coloca-se a um nível existencial: existir ou simplesmente desaparecer do mapa. Ora, nenhum português imagina ser eliminado pela Espanha, mas os israelitas têm boas razões para acreditarem nisso, bastando para tal o exercício simples de lerem regularmente a Carta do Hamas, para já não falar do seu quase extermínio há 70 anos. Acresce que a concepção de território é também completamente distinta, pela sua exiguidade, grande concentração populacional em poucos espaços, escassez de recursos naturais e existência de “pontos de passagem obrigatória”, como o golfo de Aqaba. Para usar uma imagem simples, Israel é pouco maior do que New Jersey e a Faixa de Gaza equivale para aí a Setúbal.

Além disso, o mundo é um lugar perigoso para o Estado israelita. O seu único aliado indispensável, os Estados Unidos, estão em fase de retraimento estratégico e, aparentemente, disponíveis para uma détente com o Irão. Teerão está a levar a cabo um programa destinado a adquirir poder nuclear e vê Israel, nas palavras do seu líder supremo, como um cancro que tem de ser removido. Na Síria, o regime de Bashar al-Assad, com quem tinha um modus vivendi, está por um fio e pode ser substituído por uma qualquer entidade radical islâmica, como o prova o recém-criado califado na zona da fronteira do país com o Iraque. Este último, na prática, já não existe, vive uma guerra civil mais ou menos intermitente e tornou-se uma zona de crescimento dos mais radicais grupos sunitas. No Líbano, para além da antiga e frequente ameaça do Hezbollah, há vários sinais de contágio da situação síria e as informações disponíveis apontam para a existência de células do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Na fronteira Sudoeste, embora a situação seja actualmente melhor na perspectiva de Telavive, ainda recentemente a chamada Primavera Árabe levou ao poder a Irmandade Muçulmana no Egipto, em quem nunca confiou, apesar de terem encontrado um modo de se entenderem no essencial. Finalmente, a este, a Jordânia está a ser ameaçada pelas ondas de choque da Síria e do Iraque, havendo hoje milhares de refugiados a viver neste país. Dito com recurso a uma imagem conhecida: para todos os lados para onde olha, Israel vê pregos; logo, não admira que o seu instrumento preferido seja um martelo.

Acresce que os acontecimentos da Faixa da Gaza dos últimos dias não começaram agora. Têm existido ciclos de anos de pico de conflito – 2006, 2008, 2012 –, sendo que nestas datas se verificaram situações muito semelhantes à actual, com a diferença de na última não ter havido intervenção militar terrestre.

Mesmo nos desenvolvimentos actuais é importante recordar quatro pontos. Primeiro, não foi o Governo de Benjamin Netanyahu que começou as hostilidades, antes respondeu ao assassinato de três estudantes israelitas perto de Hebron. Segundo, há já muito tempo que o Hamas tem vindo a lançar rockets contra território israelita, revelando mesmo nos últimos meses um crescendo de capacidade militar (em sentido não-clássico), quantitativa e qualitativamente. Terceiro, embora este movimento não seja uniforme, havendo sectores mais radicais e mais moderados – para além de coexistir com outros actores, como a Jihad Islâmica – os seus objectivos passam por mostrar capacidade para desafiar o Estado de Israel, o que, dito de forma crua, significa provocar o maior número de baixas possível. Quarto, no que diz respeito especificamente a esta questão, a estratégia de Telavive é defensiva e limitada nos objectivos, consistindo estes em reduzir o máximo possível o poder militar do adversário, sabendo os seus dirigentes que não é da Faixa de Gaza de onde vêm as ameaças existenciais e que seria pouco inteligente reocupar ou reanexar o território.

Todavia, apesar de tudo isto, Israel não tem o direito de fazer tudo o que quer, qualquer coisa que ache necessário, fazer pagar qualquer preço, empregar meios que são evidentemente desproporcionais a esta ameaça em concreto. Não lhe dá o direito de matar muitas centenas de civis, nem de levar a cabo assassinatos selectivos de líderes palestinianos, nem de continuar a construir colonatos na Cisjordânia – violando todas as disposições internacionais a este respeito (a começar pelas resoluções da ONU) –, nem de provocar a existência de mais de quatro milhões de refugiados.

A comparação entre o que os israelitas estão a fazer na Faixa de Gaza com a solução final nazi, uma estratégia premeditada e organizada de extermínio do povo judeu que levou à morte de mais de seis milhões de pessoas, é tão ridícula como a ligação feita por Assunção Esteves aos grupos que protestavam na Assembleia de República. Pura e simplesmente os costumes de Israel não são comparáveis aos dos seus carrascos no passado. Contudo, não só estão errados no essencial, como há cada vez mais gente a pensar e a dizer isso. E a verdade é que os seus Governos se têm posto a jeito.

Talvez a melhor forma de colocar a questão seja a adoptada por Simon Schama no final da excelente série televisiva da BBC The Story of the Jews. Em frente ao muro construído pelos israelitas, Schama diz que aqueles que não vivem em Israel têm quase a obrigação de não dizer que aquilo nunca devia ter acontecido, levando em conta que antes da sua construção morriam centenas de pessoas todos os anos em ataques terroristas. Mas acrescenta: “A Bíblia está cheia de encontros entre Homens e Deus, Homens e Homens e irmãos desavindos. É muito difícil para mim dizer que este tipo de judaísmo de abertura e de encontro tem hipótese de uma verdadeira vida entre as paredes deste muro. O judaísmo parece acossado, procurando abrigo na sombra protectora do muro. Este não é um judaísmo de bravura e de vida”.

Por muito que possamos compreender os motivos de Israel, as soluções dos seus Governos não correspondem à melhor forma de os judeus viverem na região num futuro de tempo longo. Nem ao que o judaísmo é no sentido bíblico.

Universidade Nova de Lisboa e IPRI-UNL

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