Seguro: até tu, Itália? Também tu, Europa?

1. Dos bancos da escola às salas da universidade, cresci habituado a ver a política italiana – dividida entre a ligeireza e a profundidade, atormentada entre a intriga e o drama – nos jornais, nas rádios e na televisão (só havia uma, a RTP). Fosse pela vida intermitente dos governos (que não duravam mais de nove ou dez meses), fosse pela dificuldade das coligações pentapartidárias (onde os mesmos nomes trocavam porfiadamente de pasta), fosse pela fissura que introduziu o “eurocomunismo” de Berlinguer (que era uma verdadeira “perestroika” ideológica), fosse pela anos de chumbo das Brigadas Vermelhas (que faziam já do terrorismo um risco do quotidiano), fosse pelo transe do sequestro e assassinato de Aldo Moro (que lançou a suspeita sobre toda a classe política), fosse pelo escândalo da Loja P2 (que fez alastrar e confirmou essa suspeita), fosse pela fuga à justiça de Bettino Craxi (que marcou o princípio do fim do regime), fosse finalmente pela montagem e progressão da operação “mãos limpas” (que inaugurou, com efeitos ainda por medir, nem todos bons, nem todos maus, a “judicialização da política”). A política italiana, com as suas glórias e misérias, tinha carisma, carisma substancial e carisma mediático.

É verdade que, depois do início dos anos 90, a política italiana não desapareceu da paisagem mediática, muito por obra e graça da polarização em torno da personalidade de Silvio Berlusconi. Ultimamente, o recurso a um governo técnico – que, ao contrário do que se disse na altura, está na tradição constitucional italiana –, liderado por Mario Monti, ou o fenómeno populista de Beppe Grillo deram razoável visibilidade à dinâmica política transalpina. Mas, seja porque se perdeu em densidade, seja também porque a imprensa é hoje outra, esta “noticiabilidade” não tem já o mesmo sabor; parece mais leve, mais suave, mais epidérmica.

2. No final da semana passada, acordei para estas memórias, em especial para as mais longínquas. A política italiana havia voltado às páginas dos jornais. Matteo Renzi, recentemente eleito líder do Partido Democrático – partido que integra a família socialista europeia –, avançou para a chefia do Governo italiano. Para isso, provocou a demissão e a substituição do seu correligionário Enrico Letta, que era até aqui Primeiro-Ministro de um governo de coligação. Renzi pretende manter esta coligação, por sinal uma coligação de bloco central, que agrega os socialistas do Partido Democrático e duas formações do centro e do centro-direita, pertencentes ao Partido Popular Europeu (mas que não inclui a Força Itália, de Berlusconi, também membro desta última família política).

3. Muito se tem escrito sobre este novo capítulo da política italiana, mas ninguém sublinhou ainda o impacto que esta mudança tem sobre a posição e a estratégia europeia do Partido Socialista português e de António José Seguro. E esse impacto é ostensivo, a tocar o devastador, e nada tem de surpreendente. Em poucas palavras: o avanço de Matteo Renzi para a chefia do Governo italiano é o golpe de misericórdia na “estratégia europeia” do Partido Socialista e do seu líder António José Seguro. Na verdade, Seguro está cada vez mais só, cada vez mais isolado, na Europa e, designadamente, na família socialista europeia.

À medida que os diferentes partidos que são membros do Partido Socialista Europeu vão acedendo, nos seus respectivos países, às funções de Governo, eles desmentem, primeiro pela prática e depois assumidamente pelo discurso, a posição e as posições do actual líder do PS. Assim sucedeu com os socialistas holandeses e seu Ministro das Finanças, Dijsselbloem, que preside ao Eurogrupo com um zelo verdadeiramente “troikiano”. E o mesmo aconteceu com o SPD alemão que aceitou fazer um acordo de coligação com a CDU/CSU da Chanceler Angela Merkel e, nesse acordo de coligação, não fez integrar nenhuma das propostas que pautam a agenda de Seguro. Com a agravante de que o coordenador da política europeia do SPD era o socialista Martin Schultz, que agora é o candidato do PS e do PSE à presidência da Comissão. Mais clara e mais terminante, foi ainda a marcha à ré do Presidente Hollande no já célebre discurso do início de Janeiro. Foi a certidão de óbito mais eloquente sobre a dita agenda europeia de Seguro e do PS, lavrada por aquele que passava por ser o seu mais íntimo aliado.

Sobrava, apesar de tudo e por causa de ter a liderança do Governo, o Partido Democrático italiano. A Itália é a terceira maior economia da zona euro, como maior país do sul comunga os problemas e estrangulamentos dos países do sul, o Primeiro-Ministro Letta, se bem que muito moderado, parecia partilhar com Seguro e com o PS português alguns dos pontos da sua agenda. Mas com a ascensão, à velha maneira das repúblicas italianas, de Matteo Renzi, o caso muda de figura. Renzi é mais um social-cristão do que um socialista, não entronca na tradição sindical da velha esquerda italiana, tem como referência política Tony Blair, é o primeiro a reconhecer as responsabilidades próprias da Itália, já fez um acordo político com Berlusconi em ordem a mudar a lei eleitoral.

4. Depois do SPD alemão, depois do PS francês, depois do PD italiano, todos – note-se – com responsabilidades governativas, que interlocutores sobram a Seguro e ao PS na Europa? Com que credibilidade vai António José Seguro apresentar e defender a sua “estratégia europeia”, se nenhum dos principais membros da sua família política está sequer disponível para a aceitar e considerar? Com a presente agenda e com esta estratégia, o PS está inapelavelmente condenado a um isolamento europeu. E, em matéria europeia ou de relacionamento com a Europa, não poderemos tomar como firmes nem viáveis nenhuma das suas propostas, nenhum das suas promessas. É bem caso para dizer: até tu, Itália? Tu também, Europa?

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