"Sabemos que vai haver um novo ataque, só não sabemos quando e onde"

Joseph Coutts ainda se lembra da primeira vez que uma igreja foi atacada no Paquistão. Aconteceu em 2001, logo depois dos bombardeamentos norte-americanos começarem no Afeganistão. Entretanto, já foram muitas, mas os católicos continuam a sua vida.

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Funerais das vítimas de um ataque a uma igreja de Peshawar, em 2013 FAYAZ AZIZ/REUTERS

Arcebispo de Carachi desde 2012 e presidente da Conferência Episcopal do Paquistão, Joseph Coutts nasceu há quase 70 anos, quando o Paquistão nem existia como país. E a comunidade católica não tinha como adivinhar as dificuldades que o fanatismo religioso traria. Ameaças permanentes e a certeza de que "haverá sempre um próximo atentado", num cenário em que todas as minorias correm riscos.

"A perseguição aos cristãos é apenas uma parte do problema. Nem todos os muçulmanos nos querem matar, se fosse esse o caso seríamos destruídos, somos só 2% da população. Não é isso, é uma situação muito complexa", diz Coutts, numa conversa durante uma visita a Portugal, a convite da Fundação AIS (Ajuda à Igreja que Sofre).

As minorias nem sempre foram perseguidas no Paquistão. Quando é que a situação começou a deteriorar-se e como é que se chegou aqui?
Tornou-se muito pior nos últimos anos. Quando o Paquistão foi criado, o nosso fundador, Muhammad Ali Jinnah, era um muçulmano muito moderado e iluminado. A sua ideia era oferecer uma casa aos muçulmanos mas uma democracia moderna, não um estado islâmico teocrático. Mas gradualmente, os grupos islâmicos têm pressionado todos os governos para que deixe de haver uma separação entre religião e Estado, como na Europa, para que o Paquistão seja um país onde impere a lei islâmica. E esse conceito não estava lá, no pensamento tradicional. Essa ideia começou a ganhar força durante a ditadura militar, entre 1977 e 1988, com o general Zia ul-Haq. Ele precisou do apoio dos partidos muçulmanos para se manter no poder e introduziu algumas leis islâmicas, incluindo a infame lei da blasfémia.

Isso coincidiu com as mudanças no Afeganistão.
Sim, foram vários factores. A União Soviética invadiu o Afeganistão, em 1979, e isso causou muito medo no mundo ocidental. Se o Afeganistão caísse, a seguir podia ser o Paquistão e os soviéticos ficariam muito próximos do mundo árabe e da fonte de petróleo dos ocidentais. O mundo ocidental, com os Estados Unidos à cabeça, decidiu que era preciso travá-los e para o fazer começou a usar a ideia de jihad, a promovê-la activamente. Com a ideia de que ‘os comunistas estão a atacar os nossos irmãos muçulmanos’, os EUA e a Arábia Saudita começaram a treinar jovens, deram muito dinheiro e muitas armas. Lutar pela religião era uma ideia que não exista na região, mas foi muito promovida nessa altura. Claro que depois milhares de jovens regressaram ao Paquistão com esta ideia, prontos a lutar, prontos a matar. Isso agravou muito a situação.

E depois do 11 de Setembro, ficou tudo pior?
Os americanos já tinham atacado o Iraque. Quando bombardearam o Afeganistão isso ajudou muito os muçulmanos que dividem o mundo em termos religiosos. Olham e vêem um país cristão a bombardear muçulmanos. ‘Atacaram o Iraque, depois o Afeganistão, ao mesmo tempo que ajudam os israelitas a esmagar os irmãos palestinianos…’ Os imãs muçulmanos começaram a pregar que as cruzadas ainda não tinham acabado, que as cruzadas estavam a tomar uma forma diferente, que os cristãos continuavam a querer oprimir os muçulmanos.

É uma forma de ver o mundo a preto e branco, infelizmente promovida por vários líderes internacionais.
Sim, principalmente pelos Estados Unidos nos anos depois dos atentados do 11 de Setembro.

Antes de tudo isto, a coexistência existia de facto?
Sim, nunca tínhamos tido experiências como as actuais, com muçulmanos a entrarem em igrejas para matarem cristãos. A primeira vez que isso aconteceu foi em 2001, depois dos bombardeamentos norte-americanos começarem no Afeganistão. Entretanto, já foram muitas. E agora, temos de nos proteger em todo o lado. Os muros estão a crescer. As escolas têm de estar protegidas, até as casas privadas têm de ser protegidas. O Governo colocou guardas armados nas nossas escolas, nas igrejas, a polícia quer ser avisada sempre que há uma missa especial, com mais gente. Com os bombistas suicidas há pouco a fazer, nunca sabemos de onde vem o perigo. É nessa tensão que vivemos. Sabemos que vai haver um novo ataque, temos a certeza disso. Só não sabemos quando e onde…

Isto não acontece só aos cristãos, acontece com todas as minorias religiosas no Paquistão.
Sim, a maioria dos muçulmanos no país são sunitas, mas há 20% de xiitas, que são alvo de muitos ataques. Dentro dos xiitas, há a comunidade ismaelita, que é especialmente pacífica, são poucos mas estão bem organizados. Em Carachi, têm uma universidade maravilhosa que é também um hospital. Recentemente, um autocarro com funcionários ismaelitas foi parado na estrada por um grupo de homens armados… Entraram no autocarro e mataram toda a gente, como numa execução, mais de 40 pessoas, incluindo mulheres e crianças.

Todas as minorias estão sujeitas ao mesmo medo, ao mesmo tipo de ataques?
Sim, mas os motivo diferentes. Neste caso foi um ataque puramente religioso, os extremistas muçulmanos sunitas, como os sauditas, olham para os xiitas como hereges. Esta comunidade em particular nunca tinha sido atacada, foi um choque para toda a gente, mesmo para muitos muçulmanos sunitas.

No Médio Oriente, os conflitos são cada vez mais percepcionados como uma guerra entre sunitas e xiitas. O Paquistão também já sofre as consequências disso?
Sim, mas podia ser pior. A Arábia Saudita quis que o Paquistão participasse na guerra iemenita, que é vendida como uma guerra contra o Irão, contra os xiitas. Pensava que como dá uma grande ajuda ao país tinha comprado o Paquistão, e bastava pedir. Queria uma brigada, dez mil homens. Felizmente, o Parlamento recusou. Claro que muitos extremistas vão tratar de enviar os seus próprios voluntários. Provavelmente, muitos já partiram, tal como já tinham ido para a Síria. É muito complicado. A perseguição aos cristãos é apenas uma parte do problema. Nem todos os muçulmanos nos querem perseguir, se fosse esse o caso seríamos destruídos, somos só 2% da população. Não é isso, é uma situação muito complexa. Tem a ver com estes grupos que não aceitam a democracia e que só acreditam na sua interpretação da lei islâmica.

As minorias unem-se no Paquistão?
Depois do massacre contra os ismaelitas, que eu penso que ainda são mais pacíficos do que nós, escrevi uma carta à comunidade. Dias depois convidámos toda a gente para uma missa conjunta na nossa catedral, vieram dois representantes hindus, veio um sikh, vieram muitos imãs muçulmanos, gente da sociedade civil, a comissão dos direitos humanos, que é um órgão independente, as nossas freiras. Pedimos a todos que dissessem as suas orações pela paz e pelo sofrimento dos ismaelitas.

Já tínhamos feito isso num domingo, depois de um ataque a uma igreja noutra região. Recebi um telefonema de alguns muçulmanos a pedirem para vir demonstrar a sua solidariedade. Durante a missa, ficaram à porta, a formar um círculo, de mãos dadas. No fim da missa, disse aos crentes para irem lá fora sem medo. Depois, pedi ao nosso coro para sair e cantámos canções nacionais do Paquistão juntos. Ficámos ali a falar durante horas, das nossas preocupações comuns. Muita gente tem medo dos extremistas também, e não percebe o que está a acontecer. O que me dá esperança é o acordar dos muçulmanos moderados, que cada vez falam mais em nome da paz, dizem ‘este não é o nosso islão’.

Mas o Governo e o Exército estão do lado certo? O Exército costumava ser muito corrupto e tinha ligações aos taliban.
O Governo demorou a agir. E é verdade, havia muitos extremistas infiltrados no Exército. Quando Osama bin Laden estava vivo era mais difícil, ele era visto como um grande herói. E muitos militares pensavam que não deviam matar outros muçulmanos, mas isso acabou. A corrupção fez a sua parte também, toda a gente com acesso a armas tinha dinheiro a ganhar. Agora eles perceberam, está tudo melhor e o Exército já é menos corrupto, mas esta é uma luta muito difícil de ganhar.

Acredita que a lei da blasfémia vai desaparecer?
Não tão depressa. Há cinco anos, uma deputada anunciou à imprensa que ia tentar promover a remoção da lei. As ameaças foram tantas que o Governo enviou esta deputada para o estrangeiro, nomeou-a embaixadora num país qualquer para impedir que fosse atacado. Penso que muitos já perceberam que a lei é perigosa, nem sequer prevê que se confirme a intenção de cometer o crime.

Há uns anos tivemos o caso de um rapaz de 13 anos acusado de blasfémia, de ter escrito contra o islão na parede de uma mesquita, que foi libertado pelo Tribunal Supremo. O advogado dele, um muçulmano, provou que ele nem sabia ler. Foi libertado mas não ficou livre. Os fundamentalistas tentaram matá-lo, mataram um tio dele e feriram outro à porta do tribunal. O rapaz teve de ser escondido e acabou por receber asilo na Alemanha. Mas uns meses depois o juiz do caso foi assassinado no seu gabinete.

Há casos que atraem muita atenção internacional, mas que continuam sem ser resolvidos, como o de Asia Bibi (uma cristã condenada à morte por blasfémia, depois de uma discussão que começou na partilha de água de um poço com colegas muçulmanas).

A pressão desajuda?
É bom ter pressão internacional quando o Governo pode fazer alguma coisa. Mas neste caso o Governo tem medo. Mesmo o assassino do governador (do Punjaj, Salman Taseer, morto por estar a tentar libertar Asia Bibi e por tê-la visitado), que era um dos seus guarda-costas, está na prisão mas é muito bem tratado. Se eu acuso alguém de blasfémia e se provar que eu estou errado, quer dizer que eu menti. E isso torna-se numa questão de honra pessoal. E eu vou acusar o juiz de ser um mau muçulmano, vou dizer que bebe álcool, por exemplo. Por isso é que conseguimos resolver alguns casos tranquilamente, convencendo o acusado a dizer que se enganou, arranjando-se uma maneira de salvar a face de todos.

Hoje em dia, se a lei desaparecesse, o Governo teria como impedir que os fundamentalistas a aplicassem na mesma, nas ruas?
Haverá sempre fanáticos que mesmo que a lei desapareça vão dizer que é preciso continuar a agir pelas suas próprias mãos. Os fanáticos não vão desaparecer, vão continuar a insistir que estão a defender a honra do Profeta. E nós temos de continuar a pressionar internamente e a trabalhar em conjunto com os moderados que nos estendem a mão.

É essa a sua esperança, que a situação mude a partir de dentro?
Sim, isso e o facto de não sermos, Graças a Deus, uma minoria silenciada, ou escondida. Temos liberdades. Continuamos a sair à rua. Mesmo com os ataques. Fazemos protestos pacíficos, damos entrevistas. E continuamos a abrir as nossas igrejas. Podemos falar, somos ouvidos. Corremos riscos, como todos os que se opõem ao fanatismo, mas não nos escondemos.

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