Rumos velhos, contos novos

A única flexibilidade que a Grécia conseguiu foi semântica — de resto, colocados perante o choque da realidade e a penúria dos seus cofres, os gregos limitaram-se a ganhar tempo cedendo em quase tudo.

Tenho um ficheiro no meu telemóvel exclusivamente dedicado àquilo a que eu costumo chamar “a bela arte da sinonímia política”. Trata-se de uma actividade muito apreciada dentro e fora de portas, que consiste em arranjar novos nomes para palavras que ganharam má reputação. Dessa forma, com algum investimento semântico e uma certa lata, os políticos conseguem suavizar más notícias e fingir que não estão a quebrar descaradamente promessas que fizeram aos seus eleitores.

Posso dar alguns exemplos. No tempo de Teixeira dos Santos, os orçamentos rectificativos ganharam mau nome logo, passaram a chamar-se “orçamentos suplementares”. Já Paulo Portas, quando em 2013 teve de anunciar novos cortes nos ministérios, preferiu chamar-lhes “compressão suplementar da despesa”. Em 2012, quando a Caixa Geral de Depósitos e a TAP escaparam aos cortes decretados para os funcionários públicos, o então ministro Miguel Relvas veio informar-nos de que não se tratava de “excepções”, mas sim de “adaptações”.

Também em 2012, aquando da venda do BPN ao BIC, falou-se numa almofada de 300 milhões de euros disponibilizada pela Caixa Geral de Depósitos. Mais um empréstimo? Não, explicou o próprio primeiro-ministro: apenas uma “linha de crédito”. Ainda em 2012 ano prolífico para a sinonímia política , passaram a ser cobradas portagens em Agosto na Ponte 25 de Abril, ao mesmo tempo que a Lusoponte continuava a ser compensada pelo Estado por não as cobrar. Duplo pagamento? Nada disso: “dupla tributação”. Um último exemplo: quando há três anos o IGCP passou a empresa do Estado, em claro incumprimento do Memorando de Entendimento assinado com a troika, que previa que Portugal se iria inibir de criar novas empresas públicas, o Ministério das Finanças explicou que não se tratava de uma “criação”. Tratava-se, isso sim, de uma “transformação”. Bravo!

Como se vê, Portugal é muito bom nisto. Mas, pelos vistos, a Grécia não lhe fica atrás. Ao fim de vários dias de duras negociações, a Grécia parece ter finalmente chegado a um acordo com o Eurogrupo. Mas basta ler as óptimas análises neste jornal de Jorge Almeida Fernandes ou de Teresa de Sousa para concluir que praticamente a única flexibilidade que a Grécia conseguiu foi semântica de resto, colocados perante o choque da realidade e a penúria dos seus cofres, os gregos limitaram-se a ganhar tempo cedendo em quase tudo.

Ainda assim, ontem, um entusiasmadíssimo Rui Tavares afirmava que, “no mundo real, toda a Europa deve um grande agradecimento à razoabilidade e imaginação de Varoufakis”. E eu até já estava pronto para o meu “efharisto” quando o eurodeputado do Syriza Manolis Glezos decidiu exibir publicamente a sua zanga, e pedir desculpa por ter “contribuído para esta ilusão”. Cito: “Chamar à troika ‘instituições’, transformar o Memorando de Entendimento em Acordo e tornar os credores ‘parceiros’ modifica tanto a situação em que nos encontramos como passar a chamar carne ao peixe.” Atenção, não foi um perigoso direitolas que disse isto foi um histórico do Syriza que não aprecia o rumo que as coisas estão a tomar. Já eu, aprecio. Se fosse preciso expulsar a troika para a Grécia permanecer no euro, não quereria acordo. Mas se basta deixar de chamar troika à troika, então ele é muito bem-vindo. Aliás, só para poder testemunhar o enorme entusiasmo da esquerda portuguesa, já valeu a pena. É bonito como ela hoje em dia precisa de tão pouco para ser feliz.

 

Correcção: onde foi escrito “não se tratavam de “excepções””, passou a estar, correctamente,  “não se tratava de “excepções””

 

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