Uma mistura perigosa

O nacionalismo existe, incluindo em Atenas.

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1. A BBC colocou na quinta-feira no seu site um pequeno vídeo com as imagens do funeral de Winston Churchill, faz agora 50 anos. Já vi centenas de vezes essas extraordinárias imagens dos gigantescos guindastes ao longo das margens do Tamisa a “curvarem-se” à passagem do féretro de um estadista que foi um dos mais extraordinários líderes do seu tempo. De cada vez, como esta última, elas conseguem manter a força da primeira vez. Não vou dizer que um Churchill nos dava muito jeito agora, como escreveu no Expresso o historiador Filipe Ribeiro de Menezes.

Primeiro, porque estes tempos conturbados em que vivemos hoje só muito dificilmente o permitiriam. Churchill teria as suas excentricidades devassadas, seria tratado como um vira-casacas que mudou de partido em função das conveniências e que viveu algumas profundas derrotas. Na guerra como na política. Ou talvez não. Nasceu num palácio, bateu-se por um império e nunca admitiria vergar-se perante um fanático louco que se preparava para dominar a Europa. Olhava para a liberdade como o mais inestimável dos valores que o mundo anglo-saxónico produziu. Ainda viu o império a desfazer-se e a liderança britânica ser substituída pela americana. Antecipou o que vinha aí, antes de Roosevelt. Sem abdicar da natureza própria do seu país, foi um dos primeiros defensores da união europeia.

Na mesma semana, passaram 70 anos sobre a libertação de Auschwitz. Visitar o maior campo de extermínio de judeus, mesmo que indirectamente, é voltar a ter a certeza de que o mal absoluto, aquele que desafia a nossa capacidade de entendimento, existe. Faz parte da história da Europa e, como disse o Presidente alemão Joachim Gauck, “faz parte da identidade alemã”. Nos últimos dias, a imprensa brasileira publicou algumas histórias em discurso directo dos poucos sobreviventes do campo, que acabaram por encontrar uma vida no Brasil. Continuam a viver como se tivesse sido ontem o pesadelo que lhes foi destinado. Tal como os guindastes de Churchill, essas histórias de horror, parece que as estamos sempre a ler pela primeira vez.

2. No mundo em que vivemos hoje, não convém esquecer a trágica história europeia da primeira metade do século XX. Mas também não se pode nem deve ignorar o que foi conseguido na segunda metade, com a construção de uma Comunidade de democracias assente na partilha de soberania, que deveria ser o mais eficaz dos antídotos contra o regresso do nacionalismo e da guerra. Em 1974 e, depois, na década de 90, a Comunidade europeia foi uma poderosa engrenagem de democratização do continente. A crise financeira pô-la à prova. O euro foi salvo na 23ª hora quando Angela Merkel aceitou com relutância ir em socorro da Grécia em Maio de 2010. Desde aí muita coisa mudou, como sabemos.

Muita gente deu a crise do euro como terminada. Ela regressa agora, de novo na Grécia, e, como diz Joschka Fischer, que chefiou a diplomacia alemã até 2005, “pode abrir um novo capítulo político e perigoso na crise do euro”. Que vai muito além do fim da austeridade que o governo de Alexis Tsipras anunciou e que é visto noutros países como uma espécie de choque positivo, somando-se aos múltiplos avisos de que a austeridade em excesso estava a matar a Europa e que as suas consequências políticas podiam não acabar em Atenas. A Spiegel escreve que “Tsipras é o resultado da forma como a Alemanha geriu o combate à crise do euro.” “É também uma criação não prevista de Merkel.” Além disso, outros líderes de outros países temem que lhes aconteça o mesmo. Ainda não há sinais de mudança em Berlim, mas talvez ainda seja cedo. O problema é que os primeiros passos, certamente medidos, do novo governo de Atenas não são muito tranquilizadores.

3. O primeiro acto oficial do novo primeiro-ministro foi uma visita ao memorial onde foram mortos pelos ocupantes nazis 600 resistentes e mais 200 membros do Partido Comunista. Sabemos que outros líderes democráticos já caíram na tentação de praticar actos semelhantes. Kohl, o bom gigante, visitou um cemitério onde foram enterrados soldados nazis, gerando uma enorme polémica. A história nunca desaparece facilmente da memória das nações. Mas, para quem quer negociar no quadro da União Europeia, este não foi o gesto mais amigável. A Rússia já emergiu claramente como um motivo de profunda discórdia. Tsipras já tinha dito em Moscovo que era contra as sanções à Rússia, responsabilizando a Ucrânia pela guerra. Há uma forte componente comercial nesta ligação, mas também histórica. A estreia do novo chefe da diplomacia grega em Bruxelas foi exactamente para prolongar as sanções. Houve notícias sobre um eventual veto grego que, depois, parece que não aconteceu. O novo ministro das Finanças Yanis Varoufakis decidiu escrever no seu blogue outra coisa diferente: que não houve veto grego porque ninguém se lembrou de perguntar ao novo Governo qual era a sua posição. É verdade que Antonis Samaras, quando estava na oposição e se recusou a assinar o primeiro resgate à Grécia, também foi a Moscovo ver o que poderia contar dali.

O problema é que não se trata apenas desta preferência pela Rússia e da Rússia pela Grécia. O novo ministro da Defesa, que lidera os Gregos Independentes, não quis deixar dúvidas a ninguém sobre aquilo que pensa. A sua primeira deslocação acompanhado pelas chefias militares foi à ilha desabitada de Imia, junto à costa da Turquia, para afirmar sobre ela a soberania grega. Foi por causa dela que Atenas e Ancara estiveram à beira de uma guerra em 1996. É difícil de dizer que nada disto tem importância.

Tsipras sabe o que as pessoas querem ouvir, incluindo noutros países europeus. Fala em devolver a dignidade aos gregos, de uma forma que toca muita gente também fora das fronteiras da Grécia. O seu novo ministro das Finanças já anunciou que não tenciona reunir-se com a troika nem negociar qualquer prolongamento do segundo resgate que na sua óptica já acabou. Só falará com os seus pares. Também em Portugal ou na Espanha (Rajoy dizia que não queria senhores de fato escuro a entrarem-lhe pela porta dentro), existiu um sentimento de rejeição da presença de três tecnocratas de rosto vazio de qualquer expressão que serviam para dizer o que tínhamos de fazer. Mas, de uma maneira ou de outra, vai ser preciso negociar.

4. O tempo escasseia. A Grécia tem de financiar as medidas anti-austeridade que já está a tomar. Talvez o novo governo acredite mesmo que a chanceler vai ceder. É um risco demasiado perigoso, até porque vem embrulhado, como já vimos, numa série de decisões muito pouco agradáveis para Berlim. Sem condicionalidade, o BCE não pode continuar a emprestar à banca grega, ainda hoje muito frágil, nem poderá vir a comprar a sua dívida pública. Qualquer perspectiva de saída do euro pode levar a uma corrida aos bancos. Se isso acontecer, a Grécia entrará em default e acabará provavelmente fora da zona euro. As consequências para a Europa são muito difíceis de medir, mas não serão as melhores. Fischer desafia Merkel a usar a sua grande margem de manobra política e olhar para o crescimento como a única forma de salvar o euro. Se não, arrisca-se a ver a vitória do Syriza a contaminar outras forças radicais e populistas um pouco pela Europa fora.

Voltando ao início, o que a História europeia também nos mostra é que por vezes um homem ou um acontecimento podem mudar o seu curso. Para melhor mas também para pior. Não vale a pena ignorar o que se passou na Grécia. Mas também não vale a pena endeusar os novos guerreiros contra a austeridade. Em Atenas, o populismo e o nacionalismo ainda podem dar uma mistura perigosa.

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