Revolução ou Tragédia?

1- O novo governo grego quer uma revolução à escala europeia, mas o mais provável é que assistamos a uma tragédia, sobretudo para os gregos, mas também para a Europa cuja inépcia e incapacidade de desenhar boas políticas e de se reformar institucionalmente em tempo útil, levará muito provavelmente à saída da Grécia do euro.

A vitória do Syriza é perfeitamente compreensível no campo económico, financeiro, político e social. Após dois resgates, cerca de duzentos e cinquenta mil milhões de empréstimos de credores oficiais, e de dois planos de ajustamento com a troika, o PIB contraiu 25%, a taxa de desemprego mantém-se nos 25%, com um desemprego jovem elevadíssimo, a dívida continua a crescer (cerca de 177% do PIB). Economicamente a Grécia está mal e socialmente vive uma crise humanitária. Se em 2008 11,2% dos cidadãos viviam em situação de privação material, em 2013 já eram um em cada cinco (20,3%). Estavam carentes em pelo menos quatro destas dimensões: pagar atempadamente a renda da casa; comer carne, peixe ou proteínas equivalentes em cada dois dias; ter a casa adequadamente aquecida; ter máquina de lavar, TV, telefone, carro, ter uma semana de férias fora de casa, e ter capacidade de fazer face a despesas inesperadas. Trezentos mil lares gregos deixaram de ter capacidade de pagar eletricidade. Para além da crise humanitária, dos cortes de salários e pensões, que atingem sobretudo a classe média, continua a evasão fiscal, a grande e a pequena corrupção (nalguns hospitais se se paga a médicas e enfermeiros é-se atendido mais rapidamente). As elites, identificadas sobretudo com os partidos do centro  (os socialistas do PASOK que quase desapareceram, mas também a Nova Democracia) nada fazem para atacar os privilégios especiais e para reformar o sistema político. A adicionar a tudo isto, a falta de soberania e alguma arrogância  da troika durante cinco anos explicam bem este resultado. Já que tudo o resto falhou, resta para muitos gregos a esperança no Syriza. Uma esperança que poderá será defraudada durante os próximos seis meses. 

2- O novo governo não está a ser entusiasmante. Antes do mais, a coligação com os Gregos Independentes. É possível legislar e governar com um partido com quem se partilha apenas uma recusa da troika e da austeridade?  Quanto às medidas anunciadas, umas são positivas (resolução de alguns problemas humanitários como os lares sem energia), outras são meramente simbólicas e irrelevantes (readmissão de empregadas de limpeza no Ministério das Finanças), e outras são já um sinal claro da direção a tomar. Anunciado um aumento do salário mínimo de 586 euros (em Portugal é de 505) para 751 euros, o valor antes da entrada da troika, anunciadas as suspensões dos planos de privatização do Porto de Pireus (dois terços), de aeroportos e da empresa de energia. A substância das medidas é criticável, mas a forma ainda mais. Foram anunciadas de forma unilateral pelos novos governantes gregos, sendo que violam os compromissos acordados com a troika. Trata-se de uma estratégia de falcão, e que se traduz por “entrar a matar”, esperando que o “adversário” recue, isto é que os credores sejam uma “pomba”. É extremamente arriscada e penso que não funcionará. Os líderes europeus não são muito corajosos, é um facto, mas também não me parecem ser parvos.

O governo grego pode recusar-se a falar em conjunto com a troika, mas dificilmente não falará individualmente com os seus principais credores que são... a troika. O episódio em que o presidente do eurogrupo, o ministro das finanças socialista holandês Dijsselboem, sai ostensivamente de uma conferência de imprensa com Varoufakis, após este dizer que não tenciona cooperar com a troika, mostra a principal dificuldade deste governo: a de perceber rapidamente que é necessário um compromisso político e com quem. A Grécia vai ter de amortizar empréstimos este ano de cerca de 20 mil milhões de euros e não tem reservas suficientes para o fazer. Estima-se que 4,3mM no primeiro trimestre e 6,5mM em Julho e Agosto. Em apenas uma semana, os juros das obrigações do Tesouro a 3 anos passaram de 10% para 19%.  Adicionalmente, a banca grega está dependente do financiamento do Banco Central Europeu, pelo que uma atitude de hostilidade face ao BCE só poderá ser fatal para a banca grega, levará ao colapso da economia e à saída da Grécia do euro.

3- Desde o início que foram dados sinais claros à Grécia pelas instituições europeias que poderia haver um compromisso em torno da extensão de maturidades da dívida (que já são quase o dobro das portuguesas), mas não um novo perdão parcial da dívida. Vivemos, na Europa, numa democracia multinível (local, regional, nacional, europeia) e os diferentes patamares de cidadania repercutem-se mutuamente. Os credores oficiais da Grécia e de Portugal são sobretudo os outros países europeus (e o FMI), pelo que as decisões sobre a dívida grega repercutem-se em todas as democracias nacionais. E aqui o que vemos? Em França, Marine Le Pen lidera as sondagens, com Hollande num modesto terceiro lugar. Na Alemanha, a “Alternativa para a Alemanha”, que quer a saída alemã do euro, teria 7% de votos, na Holanda, o partido conservador, nacionalista e xenófobo de Geert Wilders que tem 15 lugares no parlamento, se as eleições fossem hoje teria o dobro dos mandatos tornando-se a força política com maior representação parlamentar. Um perdão parcial da dívida grega que efeitos teria nas democracias de todos os outros países? Não haveria um aumento da polarização política, à esquerda nos países devedores do Sul e à direita nos países credores do Norte?  Não se deve analisar as consequências da democracia grega sem pensar nas consequências em todas as democracias.

4- Há um problema europeu que tem uma dimensão grega, portuguesa, irlandesa, etc., e que tem de ter uma solução multilateral com regras que devem ser gerais, com alguma discriminação positiva para os casos mais problemáticos. O problema não é sobretudo a dívida excessiva, é a dinâmica de crescimento insustentável do peso da dívida e os encargos anuais com ela, ou seja os recursos fiscais que vão para os credores e não para a saúde ou para a educação. A Grécia tem uma população e um PIB per capita em paridades de poder de compra semelhante ao português. Tem neste momento um serviço da dívida (juros em percentagem do PIB) inferior ao de Portugal dado um conjunto de medidas extraordinárias tomadas (carência de dez anos no pagamento de juros ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira e outras medidas junto do BCE). Tem, porém, uma situação social e humanitária mais problemática.

5- Há uma grande ilação a tirar dos desenvolvimentos de polarização política, à esquerda e à direita, na Europa.  É necessário relançar o crescimento e aliviar os orçamentos nacionais, sobretudo de países periféricos, e isso faz-se com dois tipos de estratégias, uma direcionada à redução dos juros de credores oficiais (quantitative easing, extensão das maturidades, períodos de carência, etc.), outra com a mutualização de certas prestações sociais, que aliviem os encargos nacionais com subsídios de desemprego, e outros, para os países mais afetados. A Europa tem de mudar e o governo português está estranhamente ausente de um debate que muito nos diz respeito. Os cidadãos portugueses pagam proporcionalmente mais em impostos e em juros que os cidadãos gregos para uma dívida menor e o governo português não tem posição? Se for negociado algo unilateralmente com a Grécia, Portugal vai continuar, qual bom aluno, a olhar, sem reivindicar tratamento semelhante, ou vai exigir uma solução multilateral europeia? Preocupa-me a apatia do governo português e também o futuro dos gregos. Tenho a desagradável sensação que o Syriza não terá a almejada revolução nas instituições europeias, mas levará a Grécia a sair do euro, contra a vontade dos gregos. Espero sinceramente estar enganado.

 

*Professor do ISEG e Presidente do Instituto de Políticas Públicas TJ-CS

O autor escreve no primeiro domingo de cada mês. Por lapso da redacção, esta crónica sai hoje. 

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