Kobani ateou revolta curda e ameaça pôr a Turquia de novo a ferro e fogo

Manifestações de terça-feira terminaram com 19 mortos e um rasto de destruição. Inacção de Ancara irrita aliados e coloca em risco negociações de paz com o PKK.

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Protestos curdos em Ancara ADEM ALTAN/AFP

O líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) tinha avisado que a queda da cidade síria de Kobani significaria o fim das negociações entre a guerrilha e o Governo. Mas não foi preciso esperar tanto: revoltados com a recusa de Ancara em intervir para travar os jihadistas, milhares de curdos manifestaram-se de Norte a Sul da Turquia, em protestos que terminaram com 19 mortos e deixaram em risco o processo de paz iniciado em 2012.

A situação em Kobani, uma das três maiores cidades da região curda no noroeste da Síria, parecia nesta quarta-feira um pouco menos desesperada. Aviões dos EUA e dos parceiros árabes bombardearam durante toda a noite e dia posições dos jihadistas, apesar de o próprio secretário de Estado norte-americano, John Kerry, ter vindo dizer que impedir a queda da cidade curda não é “um objectivo estratégico” da coligação.

“Os bombardeamentos foram muito eficazes e o Estado Islâmico foi rechaçado de várias posições”, contou à Reuters Idris Nassan, porta-voz das autoridades locais, dizendo acreditar que os jihadistas poderiam ser vencidos. A meio da tarde, porém, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos adiantava que os radicais tinham lançado uma nova ofensiva na zona leste para “reconquistar as zonas perdidas pela manhã”. E o próprio Pentágono admitiu que as bombas lançadas do ar não são suficientes para salvar Kobani de um grupo que aprendeu a camuflar-se.

Neste cenário, é cada vez maior a indignação com que os aliados e a minoria curda da Turquia olham para as reticências de Ancara. “Não é assim que esperamos que um aliado da NATO aja quando há um Inferno a acontecer às suas portas, disse ao New York Times um responsável da Administração norte-americana, sob anonimato, denunciando o “arrastar de pés da Turquia”.

Washington quer que a Turquia autorize os aviões da coligação a usarem a base de Incirlik e o seu espaço aéreo para atacar o Estado Islâmico na Síria. Por seu lado, os curdos exigem que Ancara levante as restrições na fronteira, permitindo que entrem na Síria as munições, as armas e os combatentes de que as Unidades de Protecção Popular (YPG), a milícia curda síria, desesperadamente precisam para lutar contra os jihadistas.

Mas Ancara permanece impassível, insistindo que derrotar o Estado Islâmico sem derrubar o regime sírio de Bashar al-Assad apenas criará um vácuo que outros grupos terroristas vão preencher – não o diz abertamente, mas inclui nestes as milícias curdas que, até à ofensiva jihadista, controlavam a região da fronteira. Nesta quarta-feira, os EUA e o Reino Unido disseram estar disponíveis para “examinar” a criação de santuários na região para proteger os civis deslocados pela guerra, mas é pouco claro se estão dispostos a impor a zona de exclusão aérea que a medida, proposta pela Turquia e apoiada pela França, implicaria.

Tanques de novo nas ruas
No compasso de espera, a revolta curda que crescia há semanas na fronteira, à vista dos combates que se desenrolam a centenas de metros dali, acabou por explodir terça-feira, em dezenas de protestos por toda a Turquia. Ao final desta quarta-feira ainda se contavam as vítimas – eram já 19 os mortos e dezenas os feridos – e já havia notícias de novos incidentes em Diyarbakir, a maior cidade da região curda no sudeste do país.

Só ali, dez pessoas morreram nos confrontos em que degeneraram as manifestações convocadas pelo Partido Democrático do Povo (HDP), formação curda representada no Parlamento de Ancara. Os primeiros incidentes, conta a AFP, opuseram a polícia aos manifestantes, alguns dos quais lançaram pedras e cocktails-Molotov – há também notícias, não confirmadas, de disparos contra as forças de segurança. Mas noutras zonas, apoiantes do PKK envolveram-se em combates de rua com militantes de movimento islamista simpatizantes do Estado Islâmico, de que resultaram vários mortos.

A violência só abrandou quando foi decretado o recolher obrigatório, uma medida que já não era imposta no país desde 1992, no auge da rebelião curda, e que foi decretada também noutras cinco províncias da região onde os confrontos deixaram um rasto de destruição, morte e uma tensão que o país acreditava pertencer ao passado – testemunhada pelos blindados mandados para patrulhar as ruas de várias localidades. Em Istambul, onde vive uma grande comunidade curda, a noite de violência terminou com a detenção de quase uma centena de pessoas.

O Governo turco não demorou a apontar culpas ao PKK, acusando a guerrilha de usar a comoção gerada pela situação em Kobani para o chantagear. E as imagens de manifestantes a queimar a bandeira turca prometem envenenar ainda mais a opinião pública turca, já pouco convencida dos méritos das negociações que o agora Presidente Recep Erdogan iniciou em 2012 com Abdullah Öcalan para pôr fim a 30 anos de guerra que fizeram mais de 40 mil mortos.

Do lado curdo, a recusa de Ancara em ir em auxílio de Kobani é prova suficiente de que a Turquia prefere ter os jihadistas na sua fronteira (e a lutar contra Assad) do que arriscar qualquer acção que dê força à causa curda. Numa mensagem enviada da prisão e transmitida pelo irmão, o líder da guerrilha fez saber que o Governo tem até 15 de Outubro para relançar as negociações ou todo o processo cairá. “A paz está ameaçada”, avisou o jornal independente Hürriyet.  
 

   

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