República Centro-Africana: a "pior crise" de que quase ninguém ouviu falar

A ex-colónia francesa convive há meses com um conflito sangrento que ameaça tornar-se numa tragédia humanitária. A ajuda internacional teima em demorar à medida que o país entra em colapso.

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Milicianos da Séléka Joe Penney/Reuters
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Milicianos dos anti-balako Joe Penney/Reuters

A morte aparece de todas as formas na República Centro-Africana (RCA), antiga colónia francesa de 4,6 milhões de habitantes que vive, desde Março, um terror diário imersa numa permanente batalha. A Organização das Nações Unidas (ONU) já usou a palavra “genocídio” para descrever o que pode estar no horizonte daquele que é um dos países mais pobres dos mais pobres e cuja história se escreve com sangue.

Decapitações de crianças, mulheres baleadas por Kalashnikov, jovens atirados a crocodilos, populações de cidades inteiras enclausuradas em pequenas igrejas. A RCA está mergulhada no caos das lutas armadas entre milícias sanguinárias que não hesitam na hora de disparar ou esfaquear. Ao fim de meses e meses, o Ocidente finalmente acordou e prometeu uma ajuda que peca por tardia.

A situação vivida no país foi descrita, de forma acertada, pela embaixadora norte-americana na ONU, Samantha Power, como a “pior crise de que a maioria das pessoas nunca ouviu falar”. “A RCA é parte da comunidade internacional e esta comunidade não pode permitir que os seus cidadãos sejam mortos, torturados e maltratados enquanto observa com indiferença.” O apelo é deixado numa carta no The Guardian pelo arcebispo de Bangui, Dieudonné Nzapalaing, e não podia ser mais sério.

A instabilidade está longe de ser uma novidade na RCA. Desde a independência da França, em 1960, que o país foi governado por líderes rebeldes e até por um autodenominado imperador do Império Centro-Africano, Jean-Bédel Bokassa, conhecido pelos hábitos canibais.

A última insurreição ocorreu em Março, quando o Presidente François Bozizé, também ele um ex-líder rebelde, foi derrubado pela Séléka – uma aliança de três grupos rebeldes compostos quase na totalidade por membros da minoria muçulmana. Michel Djotodia tornou-se no primeiro Presidente muçulmano e governa o país desde então, mas perdeu o domínio sobre o grupo que o colocou no poder.

Indiferentes às ordens de Djotodia, os milicianos da Séléka recusaram depor as armas e continuam a espalhar o terror, sobretudo na região norte do país, onde o poder central quase não conta. Calcula-se que 410 mil pessoas tenham abandonado as suas casas (10% da população) nos últimos meses, preferindo refugiar-se na selva. A alternativa é viver num temor constante, sempre à espera do dia em que um grupo da Séléka, “aliança” no idioma local sango, chegue para semear a destruição.

Foi o que aconteceu a Nicole Faraganda, de 34 anos, em Outubro, na aldeia de Wikamo, na região de Ouham, no Norte da RCA. Quatro carros com rebeldes da Séléka apareceram sem aviso e dispararam sobre a população que fugia. Nicole, que tinha dado à luz na véspera, ainda estava em recuperação e atrasou-se. Morreu com um tiro na cabeça, assim como um vizinho de apenas de 12 anos. O trabalho só ficou terminado quando os rebeldes pilharam a escola e o hospital e queimaram os telhados das casas. No próprio dia, os mesmos milicianos ainda mataram 12 pessoas numa outra aldeia da região.

A impunidade da matança no Norte da RCA leva a episódios como o da morte de uma criança de oito anos, na aldeia de Bombi Te, relatada ao The Guardian pelo próprio pai. "[Os rebeldes] começaram a atacar o meu filho. Tentaram matá-lo, mas a arma não funcionava. Então cortaram-lhe a garganta”, conta o homem que se identifica como Papa Romeo. “Que ameaça pode causar esta criança aos Séléka?”

Crueldade dos dois lados
Os meses de ataques impiedosos levaram as comunidades cristãs a organizar grupos armados para responder às ofensivas dos Séléka. Essas milícias, chamadas "anti-balako" (antiespadas), têm enfrentado os rebeldes, acabando por radicalizar ainda mais o conflito. Assumem-se como defensores das comunidades cristãs, mas frequentemente empreendem massacres sobre aldeias muçulmanas indefesas.

Numa das ofensivas dos anti-balako, em Setembro, o bairro muçulmano de Zere foi atacado. Soldados empunhando AK-47 invadiram as casas e mataram todos os homens. Tala Astita, de 55 anos, contou à Foreign Policy como viu o marido e o filho de 13 anos serem mandados deitar no chão para depois os rebeldes lhes esmagarem as cabeças com machetes. Diferem dos Séléka no credo, mas não na crueldade.

Este panorama deixou em alerta a comunidade internacional, mas o auxílio pode já vir tarde para evitar um genocídio de repercussões assustadoras. A França está à espera de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para enviar mil soldados, que se vão juntar aos 410 que guardam, neste momento, o aeroporto da capital Bangui.

No terreno está uma força da União Africana, composta por 2500 efectivos, que tem contido os conflitos, mas está longe de ser suficiente. A RCA irá permanecer no caos, a menos que algo seja feito, o que passa por triplicar ou quadruplicar as forças de segurança no local, como advertiu recentemente a comissária europeia responsável pela Ajuda Humanitária. Em causa está o colapso do Estado e um possível genocídio.

“A não ser que haja uma mudança imediata e significativa nas condições de segurança, estes dois riscos podem aumentar tanto que podemos ter uma tragédia em mãos. E vamos olhar para trás e perguntar: ‘Por que é que não agimos antes?’”, afirmou Kristalina Georgieva.

A ONU prevê o envio de nove mil capacetes azuis, de acordo com o secretário-geral, Ban Ki-moon, mas a decisão pode demorar meses. Lewis Mudge, da Human Rights Watch, considera, em declarações ao The Guardian, que “ainda é suficientemente cedo para evitar uma crise no país”. “Não é um genocídio nem uma guerra civil, mas está claramente a evoluir nessa direcção”, avisa.
 
 
 
 
 

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