O dia em que os EUA disseram que a tortura não serve para nada

Os métodos usados pela CIA depois do 11 de Setembro "não serviram para aumentar os esforços de contraterrorismo ou os interesses de segurança” norte-americanos, afirmou o Presidente Obama.

Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos, que coordenou a elaboração do relatório
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Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos, que coordenou a elaboração do relatório Jim Watson/AFP
Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos, que coordenou a elaboração do relatório
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Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos, que coordenou a elaboração do relatório Jim Watson/AFP

Foi uma das mais complexas investigações já realizada por uma comissão do Senado norte-americano. Foi feita contra “a oposição dos serviços secretos, de responsáveis de duas administrações e de alguns dos nossos colegas”, disse o republicano John McCain, depois da democrata Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos, apresentar o “Estudo do Programa de Detenção e Interrogação da CIA”, o programa lançado pela agência depois do 11 de Setembro. Um estudo que, resumiu o veterano de guerra, prisioneiro no Vietname, confirma “a ineficácia da tortura”.

Sucessivos directores e responsáveis da CIA mentiram ao Congresso, ao Departamento da Justiça, ao Conselho de Segurança Nacional, à Casa Branca, ao Inspector-Geral da agência e aos norte-americanos sobre a dimensão do uso das chamadas “técnicas de interrogatório agressivas” (Enhanced Interrogation Techniques), como simulação de afogamento ou privação de sono (num caso, durante 180 horas) e a sua utilidade, conclui a investigação, liderada pela senadora democrata.

Mentiram sobre o número de detidos que foram alvo destas técnicas, mentiram ao afirmar que os interrogadores só recorriam a métodos mais brutais depois de esgotadas outras possibilidades – “muitas vezes, os suspeitos eram imediatamente acorrentados ao tecto e colocados em privação de sono”. E mentiram quando disseram que os interrogatórios eram realizados por agentes treinados e na presença de médicos com experiência.  

A equipa de Feinstein “examinou 20 exemplos que a própria CIA aponta como casos em que o recurso a estas técnicas permitiu obter informação útil que não poderia ter sido conseguida de outra forma”, disse a senadora. “Em nenhum dos casos isso se comprovou.” O comité, afirmou ainda Feinstein, não encontrou “nenhum exemplo de um cenário de ameaça iminente”, em que os agentes tivessem recorrido a métodos brutais para impedir um atentado que estivesse prestes a acontecer.

O que os investigadores encontraram foi casos em que “analistas no terreno avisaram os seus superiores contra os métodos de interrogatório que estavam a ser usados e foram desautorizados pelos seus superiores na sede”. Ao todo, e apesar da sua importância e dimensão, disse Feinstein, havia “40 ou 50 pessoas que tomavam as decisões” sobre este programa.

Admitindo que foram cometidos erros e dizendo que “há elementos comuns” entre as conclusões do comité e as da própria CIA, o actual director da agência, John Brennan, insiste que a informação obtida graças a este programa e ao uso destas técnicas “ajudou a impedir planos de ataque, capturar terroristas e salvar vidas”.

Até ao seu fim oficial, em Janeiro de 2009, quando Barack Obama substituiu George W. Bush na Casa Branca, este foi “um grande projecto da CIA que envolveu recursos significativos mas que, ao contrário de todos os outros grandes programas, não foi adequadamente vigiado e monitorizado”. Pelo contrário, disse a senadora democrata: a CIA encarregou as mesmas empresas que tinha subcontratado para ajudar a montar o programa de o avaliar, “num claro conflito de interesses”.

As falhas de controlo foram tão gritantes que “é possível que nunca se saiba exactamente quem esteve detido e em que condições”, afirmou Feinstein, o rosto de um relatório que o diário The New York Times descreve como “um retrato de imoralidade difícil de abarcar e ainda mais de engolir”.

Destes 119 capturados, pelo menos 26 foram “detidos indevidamente” por causa de informações erradas ou trocas de identificação. O relatório menciona uma prisão que identifica como Cobalto, que “um responsável da CIA descrevia como uma técnica de interrogatório agressiva por si só”. Ali, foi dito a Abu Zubaida, suspeito membro da Al-Qaeda capturado no Paquistão, “que só sairia da prisão num caixão”. Noutro telegrama, citado por Feinstein, discute-se “que se Zubaida não sobrevivesse seria cremado”.

A investigação começou há sete anos e envolveu a análise de mais de 6 milhões de documentos, entre memorandos, telegramas ou gravações. Em 2012, a Comissão de Serviços Secretos do Senado partilhou uma primeira versão com a CIA e a agência iniciou então a revisão do relatório, acusando os autores de “erros e conclusões injustas”. Com este processo terminado no início deste ano – e os senadores a enviarem o relatório final para Obama – iniciou-se então uma discussão sobre o que podia ser publicado.

O documento de seis mil páginas e 35 mil notas de rodapé acabou transformado num “resumo executivo” de 528 e, ainda assim, muitos senadores republicanos, antigos e actuais responsáveis dos serviços secretos opuseram-se à sua publicação – a Casa Branca chegou a pedir ao Senado para a adiar, sustentando que os pormenores sobre tortura podem provocar ameaças contra norte-americanos e interesses dos EUA no mundo.

Um programa perturbador
“O relatório documenta um programa perturbador, envolvendo técnicas agressivas de interrogatório em instalações secretas e reforçando a minha opinião de que estes métodos não são só inconsistentes com os nossos valores como nação; também não serviram para aumentar os nossos esforços de contraterrorismo ou os nossos interesses de segurança”, afirmou Obama num comunicado.

O relator especial da ONU para os Direitos Humanos e o Contraterrorismo, Ben Emmerson, defendeu que os responsáveis da Administração Bush que autorizaram e planearam crimes devem ser processados, tal como quem cometeu tortura. “O Procurador Geral dos EUA tem a obrigação legal de acusar criminalmente os responsáveis.”

Em Bagdad, o secretário da Defesa, Chuck Hugel, afirmara ao início do dia ter “ordenado a todos os comandantes de unidades de combate para estarem em alerta máximo em todo o lado”. McCain terminou a sua intervenção respondendo aos que nos últimos dias tinham avisado que a divulgação do relatório poria em risco os norte-americanos e os interesses dos EUA.

“Infelizmente, a violência não precisa de grandes incentivos”, disse o republicano. “Há uma década que o mundo inteiro sabe que sujeitámos pessoas a tortura, que as mantivemos em buracos negros”, lembrou. “O que talvez nem os americanos nem o resto do mundo soubesse foi o pouco que isso nos ajudou a levar os responsáveis do 11 de Setembro à justiça ou a impedir novos ataques.”

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