Reinventando Hillary

Foi um caminho de 25 anos, de obstáculos que nunca a fizeram desistir. Esta é a última oportunidade para chegar ao cargo para o qual se preparou toda a vida.

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Para Bill, tudo era sempre fácil. Para ela, ficavam os sacrifícios, as pedras no caminho, a sombra de um Presidente que ainda hoje os americanos adoram. Saiu da Casa Branca, em 2000, pensando que chegara finalmente a sua hora. Foi senadora por dois mandatos pelo Estado de Nova Iorque, à espera da sua oportunidade nas presidenciais de 2008. Quando finalmente tinha ao alcance da mão o cargo para que se preparara, com Bill, toda a vida, teve de enfrentar um fenómeno que acontece uma vez no tempo de uma geração, que nem ela nem ninguém viu chegar. Não desistiu, como nunca desistiu ao longo da sua longa vida política. Com todas as cicatrizes que o tempo não curou totalmente, com a tranquilidade do seu novo estatuto de avó, está preparada para conquistar o lugar de mulher mais poderosa do mundo, incluindo os homens. Ninguém está mais bem preparado do que ela.

Mas também em 2008 ninguém parecia estar mais bem preparado do que ela. Iria herdar uma América farta de guerras, mal vista em toda a parte, prestes a mergulhar numa crise económica de uma enorme dimensão, mas ainda convencida da sua eterna vocação para liderar o mundo. Era suficientemente conhecida para que os democratas a aceitassem como a sua candidata “natural”. O fenómeno chamava-se Barack Obama e era a encarnação do “sonho americano”, o símbolo vivo de que, na América, tudo é possível, somado a um carisma irresistível e olhado como a boa nova para o mundo. A sua estratégia de campanha era ela própria, pronta para quebrar o último tecto de vidro da emancipação das mulheres, mas sem sublinhar demasiado o seu lado feminista, impróprio para o lugar de comandante-em-chefe.

Curiosamente, ela própria tinha tido a experiência do que pode fazer a eterna capacidade da América para se reinventar a si própria — em 1992, quando um jovem governador do Arkansas, um dos estados mais pobres da União, sem fortuna nem família ilustre, ousou candidatar-se à Casa Branca contra um Presidente também ele olhado como imbatível: presidira ao fim da Guerra Fria, garantindo a unificação pacífica da Alemanha e a implosão da União Soviética. Carismático, brilhante, intuitivo, Bill Clinton tirou todo o partido da recessão económica que marcou os últimos anos de George Bush. Em vez de falar de “uma nova ordem mundial”, preferiu: “É a economia, estúpido.” Hillary tinha sido fundamental para a sua carreira no Arkansas. Simbolizava a libertação das mulheres da geração do baby boom. Acreditava que podia ser uma primeira-dama diferente. Bill dizia que os americanos ficavam com “dois pelo preço de um”. Completavam-se um ao outro, formando uma poderosa “parelha política”.

Obama representava uma ruptura a uma escala ainda maior e mais inesperada, depois do momento “unipolar” da América. Era, ele próprio, a última encarnação do sonho americano. Hillary não percebeu a dimensão do fenómeno. Só viu um novato, inexperiente e ingénuo. Apenas ela estava preparada para atender um telefonema às três da madrugada e saber o que fazer. A crise financeira que se abateu sobre a América e o mundo ainda não revelava toda a sua dimensão. Acreditava na necessidade de mudança em relação aos anos de George W. Bush, mas não questionava a essência do poder americano. Não prestou atenção a quem apoiava o jovem senador do Illinois: homens, brancos, educados, para além de uma mobilização inédita dos jovens, noutras circunstâncias afastados da política. Ainda ninguém tinha a certeza de que a América estaria preparada para eleger um negro para a Casa Branca. “A sua entourage não compreendeu o desafio que Obama representava, foram completamente ultrapassados, no plano intelectual e estratégico”, diz Justin Vaisse da Brookings Institution, logo em Junho de 2008 quando tudo já havia terminado para Hillary.

Quando, no fim-de-semana passado, a candidata visitou o Iowa, foi em circunstâncias absolutamente diferentes. Foi nesse estado gelado, branco e conservador que em 2008 começou a ter noção de quanto seria difícil a sua caminhada. Obama recolheu mais votos e ela ficou em terceiro lugar, atrás de John Edwards. Agora inverteu a estratégia. A sua campanha não é sobre ela. Nem precisaria de ser, porque o seu problema é ser demasiado conhecida, carregando consigo um enorme baú cheio das coisas boas e más que se acumulam numa vida. Diz que quer merecer cada voto. Humildemente. A palavra de ordem é go slow, go small.

A candidata a candidata começou uma campanha no Iowa previlegiando a proximidade. Aqui, num café em LeClaire, a 14 de Abril RICK WILKING/Reuters
Uma mesa-redonda com pequenos empresários de Norwalk, a 15 de Abril JUSTIN SULLIVAN/AFP
Hillary toma café com membros da comunidade de Tremont Grille, em Marshalltown, a 15 de Abril RICK WILKING/Reuters
Conversa com estudantes e educadores no Kirkwood Community College Jones County Regional Center, em Monticello, no dia 14 de Abril Michael B. Thomas/AFP
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A candidata a candidata começou uma campanha no Iowa previlegiando a proximidade. Aqui, num café em LeClaire, a 14 de Abril RICK WILKING/Reuters

Há sete anos, quando chegou a New Hampshire, o pequeno Estado do Norte onde começam verdadeiramente as primárias, teve a confirmação de que alguma coisa de inesperado se passava. Famílias com os filhos ao colo atravessavam caminhos cobertos de neve para ir votar… em Obama. Foi a única vez que mostrou fraqueza, deixando cair algumas lágrimas, coisa rara em quem já tinha passado por tudo e resistido a tudo. Não resistiu à mais ingénua das perguntas de uma outra mulher: como é que consegue manter-se sempre tão bem penteada e arranjada? O seu campo ficou preocupado com uma imagem de fraqueza imprópria do “homem mais poderoso do mundo”. Desta vez, é o seu lado humano que quer mostrar. Não hesita em dirigir-se ao eleitorado feminino, com um discurso a favor de uma igualdade real. Tem aí uma enorme reserva de votos.

No seu partido, há quem a acuse de lhe faltar uma visão do futuro. Os republicanos dizem que é uma candidata “do passado”. Os comentadores interrogam-se sobre o que ela realmente pensa. Pergunta estranha para alguém que está no palco há 25 anos. Os sectores mais à esquerda dos Democratas temem que não se distancie o suficiente de Wall Street. Querem que prometa regras mais duras para os mercados financeiros, se comprometa com um salário mínimo decente, que se proponha a reverter a injustiça fiscal.

Também aqui é preciso voltar atrás. Bill Clinton tratou de modernizar o Partido Democrata antes de lançar a sua candidatura. Os Novos Democratas eram mais amigos do mercado e da liberalização económica, preparando-se para um mundo que seria cada vez mais global e colhendo os dividendos da vitória na Guerra Fria. Revolucionou o entendimento do Estado social com a célebre fórmula “from welfare to workfare”, acrescentando que havia direitos mas também responsabilidades. Foi o pai da “terceira via” europeia. Hillary tem de lidar com uma situação radicalmente diferente: contra os excessos dos mercados que conduziram à maior crise da economia americana e mundial desde a Grande Depressão.

Nesse sentido, o vídeo de menos de três minutos com que lançou a sua candidatura é um programa completo. Os heróis são as famílias e de todas as cores e feitios que lutam por uma vida decente. A mensagem dirige-se à classe média americana, que sofreu duramente com a crise e que tem o direito de receber parte dos benefícios que a retoma venha a gerar. O seu alcance é ainda maior, na medida em que a estagnação dos rendimentos da classe média já vem muito detrás, da revolução conservadora de Reagan e de Thatcher, com um imparável aumento das desigualdades. A globalização, com a deslocalização do trabalho industrial (e bem pago) para o resto do mundo e a multiplicação de empregos nos sectores dos serviços pouco especializados e mal pagos, aumentou ainda mais o fosso. Mesmo que quisesse fazer outra coisa, Obama teria de dar prioridade à recuperação da economia. Hillary chega quando a crise está ultrapassada e a economia volta a crescer. “Não temos mobilidade social suficiente”, disse recentemente num debate organizado pelo Center for American Progress, um think-tank que lhe está próximo.

Nos encontros que teve no Iowa, à mesa do café, numa bomba de gasolina ou numa pequena escola, Hillary prometeu alterar a forma como as campanhas são financiadas, movendo somas loucas (como é o caso da sua), acentuado a disfuncionalidade do sistema político. Num mail enviado aos apoiantes, clarificou a sua mensagem sobre a desigualdade: “Muitas famílias ainda estão a passar por tempos difíceis, enquanto os CEO [das grandes empresas] ganham cerca de 300 vezes mais do que o salário médio de um trabalhador.” Em 1965, um CEO ganhava cerca de 20 vezes mais do que o salário médio americano, de acordo com um estudo feito pelo Economic Policy Institute, um think-tank liberal (no sentido americano), citado pela Reuters. Hillary tem de combater uma imagem que a associa aos super-ricos e a Wall Street, que sempre a apoiou quando era senadora, lembra o correspondente do Guardian nos EUA. Está a colocar a sua mensagem um pouco mais à esquerda.

No Iowa, disse que “há alguma coisa errada quando os gestores de edge funds pagam menos impostos do que as enfermeiras ou os camionistas” que encontrou no caminho para Des Moines. Toda a gente anda à procura do que poderá ser a sua política económica. A Bloomberg dá conta de um relatório assinado em co-autoria pelo antigo secretário de Estado de Clinton Lawrence Summers e Ed Balls, o porta-voz do Labour britânico para as questões económicas, que foi preparado pelo Center of American Progress e que pode ser a base da política económica da candidata. O relatório defende o aumento dos salários, a criação de emprego e uma melhor repartição dos ganhos económicos através dos impostos. O seu propósito é eliminar as excepções “temporárias” criadas por George W. Bush para os mais ricos, com o pretexto de dinamizar a economia contra a crise, que Obama ainda não conseguiu reverter, dando margem para beneficiar directamente as famílias cujo rendimento esteja abaixo dos 95 mil dólares.

A campanha é uma cuidada coreografia para reinventar a candidata. Não vai ser fácil alterar a sua aura de membro da “realeza política” de Washington, dos Clinton ou dos Bush. “Clinton não está a correr contra um opositor democrata credível. Está a correr contra o seu próprio passado”, escreve Paul Lewis, correspondente do Guardian. Difícil de apagar. Mas esse passado também pode ser um trunfo. “Um dos melhores instrumentos que tem à sua disposição é a sua capacidade para projectar a política a um nível quase presidencial”, diz Joe Trippi à Reuters. Outros lembram que as campanhas ganhadoras têm de ser sobre o futuro.

Não ficou parada quando perdeu as primárias para Obama. Acrescentou ao seu vasto currículo os quatro anos em que foi a sua competente e leal secretária de Estado. “Ela percebeu que fazia parte da equipa de Obama e que não era uma ‘co-presidente’”, escreve um dos seus antigos consultores de 2008, Michael O’Hanlon. Acumulou uma enorme bagagem internacional, num percurso praticamente sem falhas, mesmo que sem grandes momentos. Tem amigos em toda a parte. Facto inédito, os seus colegas europeus deixaram de lado a habitual “não ingerência” na política dos outros países, para lhe manifestarem o seu apoio. Quando a Chatham House, um dos mais prestigiados think-tanks britânicos, lhe atribuiu em 2013 o prémio que anualmente entrega a uma figura que tenha influenciado a cena internacional, não lhe faltavam justificações. Hillary “abriu uma nova era na diplomacia americana, foi instrumental na reorientação do foco estratégico dos EUA para a Ásia-Pacífico”.

Sendo leal ao Presidente, sabia-se que mantinham algumas divergências. Em 2008, Hillary era vista como um falcão, Obama como uma pomba, mesmo que hoje esta designação típica da Guerra Fria já não faça grande sentido. Votou a favor da guerra do Iraque e Obama votou contra. Esperou pelo fim do seu mandato para se distanciar sem grande alarde de algumas das decisões do Presidente. Critica-o por não ter apoiado logo de início a rebelião contra o regime de Damasco, recusando-lhe maior capacidade militar e deixando criar um vazio que o Estado Islâmico ocupou.

Ainda não se pronunciou em definitivo sobre o histórico acordo com Teerão. Em Agosto do ano passado, numa célebre entrevista à revista Atlantic, defendeu uma posição mais dura e disse compreender as reservas e as exigências de Telavive e de Riad. O Irão não deveria ficar nem sequer com o direito de enriquecer o urânio a 5%. As negociações deviam também pôr em cima da mesa os apoios do Irão a movimentos terroristas. Mas criticou duramente a carta que 47 congressistas republicanos enviaram ao Presidente Hassan Rohani, dizendo que nunca respeitariam o acordo, em plena fase final das negociações. “Somos obrigados a perguntar qual é o objectivo desta carta e só parece haver duas respostas lógicas: ou estes senadores estão a tentar ajudar o Irão ou estão a boicotar o comandante-em-chefe em plena negociação da maior importância. Qualquer delas desacredita os seus assinantes.”

Foi um dos protagonistas do “reset” com a Rússia, mas há já algum tempo que insistia com o Presidente sobre a necessidade de carregar no botão da pausa. Foi no pivô (agora chamado mais moderadamente “reequilíbrio”) para a Ásia-Pacífico que a sua diplomacia suscitou mais aplausos. Nesse caso, a sua visão coincidia com a de Obama e foi ela quem teve de a executar, corrigindo a rota quando necessário. Enquanto o Presidente recém-investido vinha à Europa, rendida ao seu fascínio, para as cimeiras do G20 e da NATO, ela partia para a Ásia, em visita aos aliados regionais, garantindo-lhes o compromisso dos Estados Unidos com a sua segurança e a intenção americana de manter uma presença forte na região.

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A então secretária de Estado a bordo de um avião militar C-17 com destino a Tripoli, a 18 de Outubro de 2011 KEVIN LAMARQUE/Reuters

Diz Michael O’Hanlon, hoje na Brookings, “que ela contrariou a nova agressividade de Pequim com firmeza, mas também com elegância e sem provocações desnecessárias”. Não hesitou em travar uma batalha pública pela libertação de um dissidente cego, Chen Guangcheng, num tom pouco apreciado em Washington e detestado em Pequim. “Alguns dos conselheiros do Presidente preocupavam-se com o facto de estarmos a destruir a relação entre a América e a China”, escreve no livro que publicou com a sua experiência à frente da política externa americana, Hard Choices. “Mas ninguém estava preparado para ser responsável por deixar Chen entregue ao seu destino, mandando-nos sair de cena.” No seu último discurso como secretária de Estado, Hillary apresentou a política para a Ásia-Pacífico como um exemplo do conceito de “smart power”, distinto da velha dicotomia entre soft power e hard power. “Mandámos marines para Darwin, mas também ratificámos o Tratado de Comércio com a Coreia do Sul. Respondemos ao triplo desastre no Japão através do nosso Governo, dos nossos empresários, das organizações privadas sem fins lucrativos, lembrando a toda a região o papel insubstituível que a América representa.”

Escreveu um artigo na Foreign Policy com o título “America Pacific Century”, resumindo a sua política: “Estamos a desenvolver um forte compromisso regional na Ásia-Pacífico, estamos a trabalhar para construir a confiança entre a China e os EUA, e estamos empenhados em expandir a cooperação económica, política e de segurança sempre que seja possível.” A China acusou-a de querer “conter” o seu poder crescente.

“É este o tempo de Hillary?”, pergunta o correspondente da BBC World nos EUA. “Perante o actual alinhamento das forças políticas em Washington, Clinton é a única esperança de cimentar os ganhos políticos conseguidos nos últimos oito anos.” E aqueles que ficaram por tratar, incluindo a política de imigração, que ela sempre apoiou. Experiência e competência podem agora fazer mais sentido do que em 2008, quando ela as opôs à imbatível mudança de Obama. Serviu um Presidente que avisou ser preciso “reconstruir a América” antes de reconstruir o mundo, embora o mundo, como se sabe, nunca deixe os EUA em paz. “Ela sempre acreditou que os Estados Unidos têm de continuar a desempenhar uma liderança mundial activa para fortalecer a ordem internacional”, escreve Thomas Wright no site Politico.

Em Agosto do ano passado, na mesma entrevista à Atlantic, defendeu veementemente Israel perante a invasão de Gaza, embora tenha passado o seu mandato a gritar com Benjamin Netanyahu por causa dos colonatos. “Quem começou o conflito?” “Foi o Hamas.” Hillary tem ainda presente a experiência de Bill, que não quis acabar o seu segundo mandato sem uma última tentativa para resolver o eterno conflito israelo-palestiniano. Primeiro com Yitzhak Rabin, assassinado por um fanático, depois com Ehud Barak. “Ambos ofereceram tudo o que possamos imaginar num cenário realista para os palestinianos terem um Estado, e Arafat recusou.” Hillary ainda olha para a superpotência americana a partir da sua natureza excepcional. Aprendeu no Departamento de Estado que chega gente dos quatro cantos do mundo para lhe dizer: temos um problema, como é que tenciona resolvê-lo? Acredita na defesa dos valores universais da América, mas reconhece que “aprendemos os limites do nosso poder para expandir a liberdade e a democracia”. É a grande lição do Iraque.

Fica a questão fundamental. Vai ou não Hillary ser capaz de gerar uma onda de entusiasmo sobre o futuro da América? Vai utilizar sem restrições a carta feminina, até porque tem um bom registo nesta matéria? Sabe o que lhe custou ter de dizer publicamente que também sabia ir para a cozinha fazer bolos, quando o segundo mandato de Bill estava em risco e a campanha lhe exigiu um comportamento mais convencional de primeira-dama. É a última oportunidade que tem para chegar ao lugar para o qual se preparou toda a vida. Como sempre não poupará um único esforço. Por enquanto, parece difícil batê-la. Ainda não definiu qual será o papel de Bill Clinton, que se apresenta como um soldado disposto a fazer aquilo que ela mandar. Está em dívida para com ela. É uma boa altura para a pagar.

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