Regresso a Fidel, à boleia de Louçã

Uma coisa são discordâncias acerca das políticas do regime. Outra, muito diferente, são discordâncias acerca do regime político.

Não tinha qualquer intenção de regressar a este tema, mas Francisco Louçã foi mais forte do que eu. Num texto lastimável – Fidel e a encazinação da direita –, ele veio afirmar, cheio de subtilezas e cavilações, que “só um sonso compara Fidel a Pinochet”, convidando-nos “a analisar quem foi” tão grande homem e a “discutir a história de Cuba”, como se análises, discussões e subtilezas não pudessem ser aplicadas a qualquer ditador, tirando, vá lá, Adolf Hitler e Pol Pot. O argumento daqueles que, como eu, fizeram questão de sublinhar que Cuba é uma ditadura não tem nada a ver com as análises históricas que possam ser feitas à figura de Fidel Castro, nem com a complexidade da sua persona. Tem a ver, isso sim, com a necessidade de traçar uma linha clara entre ditadura e democracia, e de afirmar a superioridade política, moral e humana da segunda em relação à primeira.

Não o fazer na hora da morte de Fidel Castro – como Louçã não fez num primeiro texto e continuou sem fazer no segundo – é um escândalo, uma vergonha e uma indecência para qualquer democrata. Como seria um escândalo, uma vergonha e uma indecência não o afirmar na morte de Salazar ou de Pinochet. Não há esquerda nem direita no que diz respeito a ditaduras. É por isso que uma ditadura é uma ditadura é uma ditadura. Para um verdadeiro democrata, esquerda e direita são divisões políticas posteriores a uma base de entendimento comum composta por eleições livres, separação de poderes, liberdade de expressão, primado da lei, respeito pela propriedade privada e pela livre iniciativa. Certamente por ingenuidade minha, a morte de Fidel mostrou-me um Portugal que já não pensei que existisse em 2016. Tenho perfeita consciência de que nenhum membro do PCP algum dia chamaria ditador a Fidel. Mas ver o Bloco de Esquerda e seus apoiantes a fugir a sete pés de tal palavra foi uma genuína surpresa. E a tentativa de instaurar um campeonato de ditadores de esquerda contra ditadores de direita foi um espectáculo indecoroso, a que dispensava ter assistido.

Se calhar é preciso dizer o óbvio, para ver se Louçã & Companhia compreendem de uma vez por todas. Aqui vai: eu preferia mil vezes viver num regime democrático liderado por Catarina Martins, com Mariana Mortágua como ministra das Finanças e Francisco Louçã como Presidente da República (cruz credo), do que viver num regime autocrático em que todas as medidas económicas e sociais nas quais acredito fossem rigorosamente aplicadas. Seriam quatro anos de pesadelo, mas uma verdadeira democracia tem a inestimável possibilidade de remover os pesadelos de quatro em quatro anos, e possui um sistema de pesos e contrapesos que limita o poder aos mais desgraçados governantes. Desde que o sistema funcione, um democrata e uma democracia aguentam tudo, de Francisco Louçã a Donald Trump. Contudo, quando deixa de funcionar, são os pilares básicos do nosso modo de vida que ficam em causa. Essa é, aliás, a razão porque escrevi obsessivamente sobre José Sócrates ao longo dos anos e nunca me cansei de alertar para os seus ataques recorrentes às bases do sistema democrático. Uma coisa são discordâncias acerca das políticas do regime. Outra, muito diferente, são discordâncias acerca do regime político. Acima da esquerda e da direita está a democracia. Eu discordo em tudo de António Costa – menos no essencial. Até há pouco, pensava que poderia dizer o mesmo de Francisco Louçã. Pelos vistos, enganei-me.

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