Refugiados e “valores europeus”

Definitivamente, o nosso problema não são os refugiados. É a hipocrisia.

Os dramas humanitários suscitam nos atores políticos doses substanciais de hipocrisia e de retórica humanitária – e, infelizmente, pouco mais! Apressam-se a falar de direitos humanos, “valores europeus”, solidariedade, ao mesmo tempo que veiculam uma leitura utilitária, indigna, dos migrantes.

Entre nós, por exemplo, Paulo Portas fala dos imigrantes como jovens reprodutores numa sociedade com poucos filhos; e António Costa acha que eles bem nos poderiam ajudar a tomar conta da floresta que arde... Estes homens falam para setores da opinião com quem julgam partilhar a opinião de que os imigrantes (ainda que hoje falem só de refugiados) só deverão ser acolhidos se economicamente úteis a quem os acolhe. A “solidariedade” fica-se por aqui.

Esta crise, que nos é descrita como uma vaga (Cameron chamou-lhe uma “praga”...) de chegada intensa de refugiados à Europa, não é a pior à escala mundial desde o fim da II Guerra Mundial, e, como nos deveríamos lembrar, nem começou este verão, como pretende o sensacionalismo de muitos noticiários. Mas é verdade que a proliferação de conflitos armados que duram há anos tem levado a que o número global de refugiados (51 milhões registados em 2013, 6 milhões mais do que em 2012) se aproxime dos números de 1945. O problema é que os países ricos do Norte do mundo há muito que mantêm uma política de encerramento de fronteiras, acompanhada de discursos xenófobos e práticas racistas, que têm atingido todo o tipo de migrantes, não só aqueles que se assumem como migrantes económicos (como se quem migra o fizesse apenas por um motivo), mas também todos aqueles que reivindicam o seu estatuto de refugiados, em fuga da guerra, da perseguição, da discriminação. Se uma parte seguramente importante da opinião pública parece ter-se deixado agora sensibilizar pelo drama dos sírios, não vejo sinais de mudança significativa relativamente ao ainda mais antigo drama dos iraquianos, afegãos, paquistaneses, palestinianos, eritreus, sudaneses, somalianos e de outros africanos. Até hoje, todos aqueles que, chegando à Europa, ficam retidos num aeroporto, numa ilha italiana ou grega, nas lâminas do arame farpado de Ceuta e de Melilla, na fronteira húngara (ou, para falar de outro muro, na fronteira do Texas), sempre que invocaram o estatuto de perseguido e pediram asilo político, foram sempre suspeitos de mentir, de “apenas” pretender melhorar as suas condições de vida “à custa de quem cá vive”. Foram sendo, por isso, na sua grande maioria, amassados em centros de internamento (para onde irão, não duvidem, muitos destes refugiados) de muito má fama, à espera da decisão administrativa ou judicial mais comum: a expulsão.

Hoje, alguns dirigentes europeus (não todos, nem sequer a maioria!) assumem a legitimidade da demanda dos sírios, ao fim de quatro longos anos de guerra civil (e já nem vou discutir as responsabilidades internacionais nela...), e dizem-se disponíveis para acolher bastantes mais refugiados que no passado. Na Alemanha, sociedade muito dividida quanto à questão, Merkel e os seus aliados social-democratas parecem ter-se decidido a enfrentar o ressurgimento dos fantasmas do passado e abrir as fronteiras. A tal ponto que, além de se enfrentarem à islamofobia galopante, que fala hoje dos muçulmanos como há 70 anos ali se falava dos judeus (gostaria de um dia me dedicar a esta comparação), enfrentam-se a contragosto às elites governamentais nacionalistas da Europa Centro Oriental pós-comunista (Hungria, Polónia, Eslováquia, República Checa, os bálticos), que se assumem como as novas Sentinelas do Ocidente, para os quais, na voz de Viktor Orbán, “se deixarmos entrar toda a gente, será o fim da Europa” - isto é, da Europa que o líder húngaro define como “cristã”. “Temos de tornar claro a estas pessoas”, frequentemente descritas como “estrangeiros que são terroristas e criminosos em potência” (Libération, 3.9.2015), que “não vale a pena iniciarem a viagem, ou pagarem a traficantes, porque não poderão passar na Hungria” (Orbán, PÚBLICO, 3.9.2015). Abertamente anticigano e discretamente antissemita, Orbán, pelo menos, nunca assumiu outro tom. E aqui era bom que Merkel percebesse a sua responsabilidade, e a dos seus governos, quando garantiu, em 2010, que “esta ideia de termos pessoas de diferentes origens culturais, vivendo felizes lado a lado, não funciona. (…) O multiculturalismo falhou, e falhou completamente (Merkel, Guardian, 17.10.2010). Ela pode ser hoje uma governante que, com coragem, decidiu assumir as responsabilidades especiais de ser o maior e mais rico Estado europeu – mas demasiado tempo legitimou e reforçou o racismo latente dos alemães (e já nem volto aqui à questão dos gregos). E, por mais impressionante que possa ser a sua disponibilidade em receber 800 mil refugiados num só ano, era bom compará-la com o esforço que há anos sustenta o minúsculo Líbano que, segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, acolhe um terço dos 3,9 milhões dos refugiados sírios fora do país, a que se somam, há décadas, meio milhão de palestinianos expulsos das suas terras nas várias guerras com Israel. Mais de 40% da população libanesa é constituída por refugiados. A Turquia, pelo seu lado, terá já acolhido outros dois milhões de sírios. E a própria Síria durante muito tempo acolheu muitos iraquianos...

Por cá, Paulo Portas falava “daquela criança”, referindo-se ao pobre Aylan, três anos de idade, filmado de bruços, morto, numa praia turca, para garantir que “a Europa ou é o que são os seus valores ou não é nada”. Para ele, “a tradição portuguesa é de acolhimento” (Portas, in TVI24, 3.9.2015). Talvez, ainda que a história não o demonstre tão facilmente. E a tradição de Portas, de que é feita ela? Se em maio passado Passos usou o desemprego para rejeitar a quota de refugiados que a UE nos queria atribuir (para isto o desemprego, afinal, existe...), Portas tem 20 anos de tiradas contra os afroportugueses dos bairros suburbanos e de campanhas à Le Pen contra “a ideia utópica, facilitadora, de uma certa esquerda em matéria de imigração. Um país tem limites óbvios. Eu quero muito maior rigor nas entradas. Portugal não tem, sobretudo num momento em que o desemprego aumenta, condições para acolher muito mais imigrantes”, o que “geraria um ciclo perigoso, (…) de conflitualidade social” (Portas, PÚBLICO, 3.3.2003).

Definitivamente, o nosso problema não são os refugiados. É a hipocrisia.

 

Uma nota para homenagear Manuel Dias da Fonseca (1923-2015), que morreu há uma semana. Uma vida admirável, e um caso raro nas políticas públicas para a cultura, a contracorrente da asfixia mercantil de quase tudo quanto hoje se faz.

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