Refugiados: e tudo o Acordo levou

“Tudo aquilo que construímos até agora, foi destruído em 24 horas”

Começou assim a primeira intervenção do encontro entre as diferentes entidades de acção humanitária em Lesbos, no rescaldo do início da implementação do Acordo entre União-Europeia e Turquia na ilha. Conheço na primeira pessoa aquilo que construíram antes do Acordo. Também eu coloquei as minhas pedras quando estive na ilha, como voluntária, durante o mês de Janeiro. De volta a Lesbos, agora em representação da Plataforma de Apoio aos Refugiados, testemunho, diariamente, tudo aquilo que o Acordo levou...

Olho por entre as grades do portão do Campo de Moria, agora fechado.

Lá dentro, vejo as mesmas crianças que em Janeiro agasalhei e reconfortei, recém-chegadas dos barcos, assustadas e enregeladas. Não são as mesmas crianças: estas chegaram depois do Acordo, e por isso estão detidas em Moria. Mas são as mesmas crianças: nascidas nos destroços da guerra, tudo o que conhecem da vida é a luta pela sobrevivência. Sim, são exactamente as mesmas crianças. Mas porque chegaram a Lesbos depois do Acordo que tudo levou, resta-lhes esperar num campo sobrelotado, onde são privadas de liberdade e das mais elementares condições. A menos de 10 kms, crianças que chegaram à ilha antes do Acordo, brincam alegremente connosco, e com os seus familiares, nos baloiços do Hotel da Caritas. Crianças a serem crianças!

Conheci há relativamente pouco tempo a obra de um artista sírio, Tammann Azzam, que sobrepõe algo tão belo como “O Beijo” de Klimt, num fundo com ruínas de Damasco. Para mim é uma metáfora dos contrastes de Lesbos que testemunhei em Janeiro. Uma ilha lindíssima, verdadeiramente encantadora, um pedaço de paraíso na terra! Verdejante, pitoresca, com aquele género de beleza que procuramos quando vamos de férias, que nos absorve por completo e nos faz esquecer o mundo lá fora. Tal como quando contemplamos uma obra de arte como “O Beijo” de Klimt. Mas quando esse beijo surge sobre as ruínas de Damasco...quando a cada curva da encantadora ilha de Lesbos surge uma imensidão de vestígios das condições desumanas e de perigo que refugiados se vêem obrigados a enfrentar...o que era bonito, passa a ser simplesmente triste.

Olho por entre as grades do portão do Campo de Moria, agora fechado.

Em breves instantes, revisito “O Beijo” de Klimt sobre as ruínas de Damasco. Dirigem-se a mim caras sorridentes que me são familiares: um pai e duas meninas com quem estamos a trabalhar no Hotel da Caritas. As meninas abraçam-me e enchem-me de beijos, com a ternura a que já me habituaram. Pelo meio soltam uns efusivos ‘Hello!!!!’, ‘I love you!’, mostrando-me, com orgulho, os progressos no inglês. Crianças a serem crianças! O brilho nos olhos, os sorrisos, as gargalhadas, é assim no Hotel da Caritas, é assim no Campo de Kara Tepe, ou no Campo de Pikpa. Não há migrantes ou refugiados, há ‘residentes’. Para muitos, o Acordo levou também o dia da entrevista com os serviços de asilo, trocando as voltas a vidas já completamente viradas do avesso. Mas este pai, que vejo a dirigir-se a mim por entre as grades do portão de Moria, tem o mesmo sorriso rasgado que as suas filhas. Acaba de saber que tem viagem marcada para a Suécia, onde irá reencontrar a sua esposa, onde as meninas irão reencontrar o colo da mãe. Sim, “O Beijo” de Klimt! Uma vez mais, sobre as ruínas de Damasco. Enquanto o pai e as meninas de sorriso rasgado se dirigem a mim, passam por um grupo de refugiados que estão sentados no chão, debaixo de um sol intenso. Estão em greve de fome, como forma de protesto por causa da detenção arbitrária e das condições desumanas do Campo de Moria. O que diferencia uns e outros? Uma data. 20 de Março. Os primeiros chegaram antes, os segundos chegaram depois.

E tudo o Acordo levou...

Professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, actualmente em Lesbos em representação da Plataforma de Apoio a Refugiados _ Linha da Frente @ Grécia

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