Portugal cala-se sobre violações de direitos em África por "razões económicas"

Salil Shetty, secretário-geral da Amnistia Internacional, considera que os direitos humanos estão em retrocesso na Europa e lamenta que mesmo líderes europeus “com visões progressistas” fiquem “em silêncio por medo de perderem votos”.

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Salil Shetty: “Os Governos têm de ter a transparência máxima e não o secretismo máximo” Daniel Rocha

É por “razões económicas” que Portugal nada diz sobre violações de direitos humanos em países africanos a que está ligado. A denúncia é do secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, que ontem se encontrou com o primeiro-ministro, Passos Coelho. Horas antes, falou ao PÚBLICO sobre assuntos como a discriminação na Europa e disse que as políticas migratórias actuais consistem em “empurrar as pessoas para fora”, o que é um erro porque “mais imigração representaria mais sucesso económico”.

Nos contactos que tem mantido em Lisboa, Shetty, 53 anos, indiano, lembra que a Amnistia foi criada em 1961, depois de o fundador, Peter Benenson, ter lido uma notícia sobre a detenção de estudantes portugueses. “Não existiríamos sem Portugal.” Em véspera de eleições para o Parlamento Europeu falou também sobre assuntos como a Síria – “provavelmente a maior tragédia do nosso tempo” – e os programas de vigilância global em larga escala. Edward Snowden “está do lado certo do direito internacional”, afirma.

Veio falar sobre discriminação na Europa. Como avalia a situação e como acha que se deve lidar com ela?
Estamos muito preocupados com os retrocessos dos direitos humanos desde há uns anos. Estamos focados em duas dimensões: o tratamento de refugiados, imigrantes e requerentes de asilo; e a discriminação contra ciganos. São exemplos da inversão dos valores fundamentais da inclusão e igualdade. E a crise económica agravou a situação.

Esses valores estão em perigo?
Sim. Os membros da Amnistia em Portugal contaram-me que quando vão às escolas falar da pena de morte, jovens de 15 e 16 anos acham que a pena de morte é uma coisa boa. Pensaríamos que na Europa isso seria coisa do passado, mas essas ideias estão a voltar. Vimos em Lampedusa [ilha italiana, importante porta de entrada de imigrantes] pessoas que vinham a fugir de perseguições, de violência, da pobreza, literalmente empurradas de volta para o mar e muitos morreram… Diz-se que a Europa está cheia e não pode receber mais gente mas o número dos que acolhe é muito pequeno. O caso dos ciganos é também um exemplo de discriminação e aí a questão institucional é importante: há legislação anti-discriminação mas não é utilizada. Veja-se o caso da República Checa.

Critica a Europa pelas suas políticas migratórias e de asilo e por achar que a resposta à vaga de refugiados da Síria foi inadequada. O que é que a Europa podia fazer diferente?
As políticas actuais assentam na detenção, em empurrar as pessoas para fora, o que leva a graves violações dos direitos humanos e não corresponde aos padrões europeus. A detenção é um último recurso. Em Junho, o Conselho Europeu vai discutir estas políticas e o que propomos é que o sistema de busca e resgate existente serva para proteger os imigrantes, refugiados e requentes de asilo e não para os manter à distância. O apoio que é dado pela Europa aos países por onde entram é muito fraco, deve ser reforçado. Outra dimensão é o outsourcing que a Europa tenta fazer do problema: procura manter os imigrantes em países como a Líbia, Marrocos, Turquia, para não virem, mas isso não pára a imigração. Erguer barreiras não funciona. O que defendemos é que deve haver mais formas de permitir que as pessoas entrem legalmente.

Em que medida é que a crise influencia as políticas de asilo? As políticas existentes foram definidas antes da crise.
A crise foi usada por grupos populistas para atacar pessoas. O argumento económico contra a imigração é muito fraco. Na maior parte dos países, mais imigração representaria mais sucesso económico. Quando há crise aparece esse argumento de que os imigrantes devem partir mas a verdade é que os imigrantes normalmente fazem os trabalhos que mais ninguém quer fazer. Toda a gente beneficia.

Falou de sentimentos anti-imigração. Como encara o crescimento de grupos extremistas?
O bom da democracia é que todos podem expressar os seus pontos de vista mas precisamos de liderança. Infelizmente mesmo líderes com visões progressistas ficam em silêncio por medo de perderem votos. A liderança implica não estar apenas preocupado com a próxima eleição mas com a próxima geração. Se se acredita em valores não se pode ter políticas de imigração e de asilo contrárias a esses valores, que contrariem os direitos das pessoas.

A Europa vai ter agora eleições. Qual é melhor cenário pós-eleitoral em matéria de direitos humanos?
 Se considerar por exemplo a austeridade, que é um problema sério em muitos países, como Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, e me perguntar o que é um bom resultado nesses países, digo-lhe que não importa quem ganhe, o que importa é que sejam pessoas sensíveis aos direitos das pessoas vulneráveis porque infelizmente a austeridade foi provocada por alguns mas as consequências atingem os mais vulneráveis. Precisamos de Parlamento Europeu de pessoas sensíveis aos direitos humanos e que os promovam. É esse o melhor cenário.

Deixando a Europa: para a Amnistia quais são actualmente as situações mais preocupantes a nível internacional. É ainda a Síria? A República Centro-Africana?
A Síria é provavelmente a maior tragédia do nosso tempo. Podia prever-se o que ia acontecer e a comunidade internacional não agiu. Todos estavam a fazer política: China e Rússia de um lado, países ocidentais do outro; Irão de um lado, Arábia Saudita do outro; e as pessoas a morrerem. A tragédia na Síria é que toda a gente tinha voz menos as pessoas [que lá estavam]. Do nosso ponto de vista a questão Síria deve ser encaminhada para o Tribunal Penal Internacional. Claro que a questão agora é mais complicada com a Ucrânia mas há documentação sobre crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos pelo regime de [Bashar al-] Assad e violações de direitos humanos dos dois lados, também pelos rebeldes. Quanto à República Centro-Africana, como na América ou na Ásia não há muita consciência do problema, o que recomendamos é um apoio dos países europeus às forças no terreno face a uma sistemática limpeza étnica da população muçulmana.

Quando foi fundada, a Amnistia começou por dedicar-se à defesa da liberdade de opinião e à libertação de prisioneiros de consciência. Ao longo dos anos alargou o seu campo de acção. Exemplo disso é a sua declaração de que “a tortura final é a pobreza”. Os problemas sociais vão tornar-se tema mais importante na actividade da organização?
Em 2001 a Amnistia decidiu actuar a todos os níveis dos direitos humanos, não apenas civis e políticos mas também económicos e sociais. É difícil fazer essa distinção. O problema de uma mulher da favela, no Brasil, que tenha sido atacada, não tenha comida, que o marido tenha sido agredido, que não tenha acesso à educação é económico-social, é cívico, é político?  Se pensar na situação portuguesa, com o actual nível de austeridade, com impacto nos direitos, não pode dizer-se que é apenas uma questão económica. Tudo está ligado.

Como sabe melhor do que eu há vozes críticas que consideram que a Amnistia se está a “dispersar”, que não pode fazer tudo bem e se arrisca a desviar-se daquilo que faz melhor.
Tenho consciência disso. Tenho permanentemente que fazer escolhas sobre a que assuntos dar atenção. Como organização de direitos humanos não podemos ser burocráticos. Tudo o que a Amnistia faz é responder à realidade no terreno.

Há tantas situações a precisarem de atenção, como é que escolhem uns assuntos e não outros?
Temos em conta a urgência, a gravidade, os efeitos. Veja, por exemplo, o interessante caso de vigilância denunciado por Edward Snowden …

Quero ouvi-lo sobre isso.
…Uma situação destas, em que o direito à privacidade é activamente subjugado, é um assunto central para a Amnistia mas alguém podia dizer que não era. Não digo que as decisões são fáceis. E não nos devemos esquecer que a Amnistia é um movimento democrático. As direcções são eleitas. Temos mais de três milhões de membros. Se a Amnistia perdeu a capacidade para se focar no que é revelante, como é que poderia continuar a aumentar o número de membros? Alguma coisa devemos estar a fazer bem.

Na questão da vigilância em massa a discussão tem-se posto entre segurança e privacidade. Como olha para o problema? O que é que a Amnistia pode fazer? É uma questão nova.
Nova e velha. O meu pai era um jornalista muito activista e crítico e dizia-me que o nosso telefone estava sob escuta. Eu achava que ele devia estar um pouco paranóico, até que um dia num jornal apareceu a lista de telefones sob escuta e o nosso era o primeiro.

Agora acontece a uma escala diferente.
As tecnologias permitem-no. O assunto é novo mas na essência não é tão novo assim: os governos querem descobrir o que as pessoas estão a fazer e violam as suas liberdades.  Falou da questão da segurança versus privacidade. O princípio do direito internacional é que, em questões de interesse público, os governos têm de ter a transparência máxima e não o secretismo máximo, não podem ter a justificação da segurança como desculpa para esconder. Se for matéria de interesse público - e por isso Snowden está do lado certo do direito internacional - o princípio é de que deve haver o máximo de transparência. Por outro lado, quando se trata do indivíduo, o princípio é de que prevalece a máxima privacidade. É assim a lei internacional. Infelizmente, os EUA desde o 11 de Setembro têm vindo a passar por cima de lei atrás de lei. Veja-se o caso do waterboarding [simulação de afogamento, em interrogatórios]; ou a situação dos [presos] de Guantánamo. Estão a criar as suas próprias leis, dentro da sua ideia de que todo o mundo é um teatro de guerra.

E o que pode a Amnistia fazer?
O que dizemos é que deve haver regras que orientem a comportamento dos governos. Actualmente não há forma de organizações como a Amnistia, ou indivíduos, poderem legalmente acompanhar processos como o de Snowden. Apresentámos uma acção nos EUA e outra no Reino Unido reclamando aos governos transparência sobre o que fazem com a informação que recolhem. Muita gente não tem consciência da importância que isto tem. É como ter uma câmara no seu quarto e o governo dizer: estamos a filmar mas não vamos usar as imagens, a questão é que não queremos a câmara no nosso quarto, usem ou não usem as imagens. Há agora um grande debate sobre o controlo da Internet. Se for controlada apenas pelos EUA e por alguns países ocidentais é um problema, mas ao mesmo tempo ninguém quer que sejam a China ou a Rússia a fazê-lo.

Há quem defenda agendas específicas de direitos humanos para regiões específicas. No caso de África, por exemplo, nessa lógica as prioridades seriam o direito à vida ou à saúde e não direitos como os dos homossexuais. Isso não faz sentido?
As pessoas não podem ser perseguidas nem atacadas pelas escolhas pessoais. Os princípios e valores são universais, a Declaração dos Direitos do Homem é universal. A sua aplicação deve ter em conta o contexto – há por exemplo interpretações islâmicas diferentes sobre a pena de morte – mas não se podem comprometer princípios básicos. Falou sobre África e há um assunto que envolve Portugal que nos preocupa e de que vou falar com o primeiro-ministro: o silêncio de Portugal, por razões económicas, sobre violações de direitos humanos em países a que historicamente está ligado, como Angola ou Moçambique. É um motivo de grande preocupação para nós. Na Europa, Portugal fala sobre direitos humanos também deve falar deles com os seus [outros] parceiros. A Guiné-Equatorial [para entrar para a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] aprovou uma moratória mas não aboliu a pena de morte, em Angola há um bloqueio da sociedade civil e ataques a jornalistas e Portugal fica calado.

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