Quem são eles?

O que há de comum ao fracasso (maior ou menor) do centro-esquerda europeu é não ter conseguido integrar os efeitos negativos da globalização nas economias desenvolvidas.

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1. A primeira coisa que convém lembrar é que Arnauld Montebourg não representa apenas mais uma gradação de esquerda do Partido Socialista francês. O ex-ministro da Economia é contra a globalização e contra uma Europa que limite a capacidade de decisão da França. Se há alguma designação que lhe caiba é um certo nacionalismo eurocéptico, próprio de alguns sectores da esquerda francesa, mesmo que seja distinto do nacionalismo de Marine le Pen.

Quando disputou as primárias para escolher o candidato socialista ao Eliseu, fez campanha pela “desmundialização”, pela defesa dos “campeões” nacionais e pela “reindustrialização” da economia, uma ideia hoje muito em voga mas que esconde, por vezes, meras tentações proteccionistas.

A segunda coisa é que Manuel Valls e, agora, Emmanuel Macron, o “Mozart” do Eliseu que passou para Bercy, correspondem a uma nova geração (Valls mais velho, Macron mais novo) que consegue olhar para a realidade com alguma distância, ao contrário dos velhos “elefantes” do PS, que se alimentam a si próprios com grandes tiradas ideológicas, enquanto tomam café no Flore e almoçam na Brasserie Lipp (sem qualquer crítica ao seu bom gosto, a esquerda francesa sempre foi uma elite distante da tradição sindical em que se apoiam, por exemplo, as sociais-democracias alemã e nórdica). Numa entrevista recente ao El País, Valls, catalão de origem, utiliza uma velha expressão de Blair e de Clinton para justificar o seu programa: “É preciso fazer coisas que resultem.” Num país como a França, em que o confronto ideológico entre esquerda e direita está profundamente enraizado na cultura política, a forma como actua e o que diz marcam uma assinalável diferença. Hollande não teve outro remédio senão apostar neles, porque é a última oportunidade de recuperar o prestígio perdido. Aliás, Macron esteve até Junho no Eliseu e foi o principal autor do “Pacto de Responsabilidade”, um novo programa reformista corrigido dos exageros da campanha eleitoral. É jovem mas com um curriculum muito vasto e variado, incluindo ter trabalhado para os Rothschild como banqueiro. Ficou conhecido pelo comentário que fez ao imposto de 75% que Hollande prometeu aplicar aos rendimentos milionários: “É Cuba menos o Sol.”

Manuel Valls fala da coragem para fazer as reformas que sempre faltou à França (direita e esquerda confundidas). Disse ao El País que a social-democracia corre o risco de desaparecer se não conseguir adaptar-se à nova realidade europeia e à globalização económica. Lembrou que “a esquerda nunca é tão forte como quando se dirige a todos e não apenas a uma parte da população”. É sensível aos problemas de muita gente que vota em Le Pen: “(…) Temo-nos esquecido de falar da França, da Pátria, da República. Deixamos esses conceitos à extrema-direita.”

2. Não é por acaso que os seus críticos lhe chamam “Sarkozy de esquerda”. Excluindo o estilo e a rudeza do anterior Presidente, Valls também rompe com uma linguagem tradicional, na economia, na imigração ou na ordem social. É, provavelmente, por razões semelhantes que Matteo Renzi, o novo líder italiano de centro-esquerda, é apelidado de “Berlusconi da esquerda”, sem os escândalos nem a riqueza. A coincidência tem a ver com essa ideia de ruptura que Berlusconi aplicou à direita pós-democrata-cristã. A Itália sabe o que é o colapso de um sistema partidário. Com o fim da Guerra Fria e do “compromisso histórico” entre a Democracia-Cristã e o Partido Comunista, que permitiu governar a Itália e acumular níveis de clientelismo e corrupção insustentáveis. O centro-direita implodiu e o Partido Socialista desapareceu. A direita teve direito a Berlusconi. A esquerda fragmentou-se. Recuperou algum fôlego com a constituição do Partido Democrático, uma fórmula pragmática do antigo Presidente da Câmara de Roma, Walter Veltroni, que se transformou num “saco de gatos” entre as suas várias tendências. Até Renzi tomar o partido por dentro. As promessas que fez foram manifestamente exageradas: mudar a Itália em 100 dias, que agora já passaram a mil. Atacou o problema político central: o sistema eleitoral (que já está em processo de aprovação no Parlamento). Tem uma legitimidade que lhe vem dos 41% que obteve nas eleições europeias (um resultado que nenhum partido logrou obter desde os anos 1950), fazendo recuar Beppe Grillo e o seu populismo radical. Às vezes parece imaturo. A desvantagem pode vir a ser colmatada pelo facto de viajar com pouca bagagem, ao contrário da velha guarda que arrasta consigo malas e malas cheias de passado e que está em perda em quase todos os países europeus. Berlusconi foi a personalização da política. Renzi também joga essa tecla. Ele e Valls têm um enorme desafio pela frente: provar que há uma alternativa à política de austeridade salvífica, capaz também de levar em conta a economia global e a estabilidade do euro. De algum modo, é essa mudança que António Costa também se propõe fazer aqui. Foi também a necessidade de mudança que levou, em Espanha, um ilustre desconhecido, portador de um currículo mais académico que político e com uma vida que já o levou a muitos sítios, a chegar à liderança do PSOE. Pedro Sánchez fala em “modernizar a Espanha” da mesma forma com González o fez nos anos 80 e 90. Quer ajudar a transformar as PME de forma a virá-las para as exportações. Numa entrevista ao El País lembrou que a redistribuição social e a competitividade não são coisas separadas. Quer entender-se com o primeiro-ministro Rajoy em três áreas fundamentais: Constituição (por causa da Catalunha), educação e energia.

3. Tudo isto pode ser sol de pouca dura. Mas as democracias europeias não podem cair numa situação em que haja apenas “verdades únicas” para funcionar na zona euro. Seria um desastre político. Esta é, talvez, a boa altura para fazer esse debate na medida em que o resultado da receita aplicada não está a ser o melhor. As economias europeias estancaram ou voltaram ao crescimento negativo, anunciando uma terceira recessão. O desemprego não baixa, a deflação ameaça.

Antes desta nova geração de líderes, a crise levou os partidos socialistas e social-democratas a cortar com a herança “blairiana”, tentando virar de novo à esquerda, animados que estavam com a maciça intervenção do Estado na economia para evitar uma Grande Depressão. O SPD alemão, com as suas derrotas face a Merkel, quis cortar com a herança de Gerhard Schroeder, cujo programa reformista permitiu a actual situação confortável da economia alemã. Em Londres, Ed Miliband ganhou o New Labour ao seu irmão blairista (David), prometendo cortar com o passado. Ainda não conseguiu construir uma mensagem capaz de ganhar de novo a confiança dos eleitores do centro, sem os quais não há vitórias eleitorais. Em Portugal, Sócrates cortou consigo próprio quando começou a crise.

O que há de comum ao fracasso (maior ou menor) do centro-esquerda europeu é não ter conseguido integrar os efeitos negativos da globalização nas economias desenvolvidas, ou seja, adaptar-se a um mundo que deixou de estar ao serviço da riqueza europeia. Também não pode aumentar a pressão fiscal sobre a classe média, já de si bastante “espremida”, para melhorar a justiça social. As classes sociais deram origem à fragmentação social, que se organiza em função de outros problemas: da imigração à precaridade do trabalho ou ao aumento da exclusão social. O maior problema é que, se isso não for possível, a alternativa ao centro-direita poderá ser, em muitos países, o nacionalismo e o populismo.

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