Quanto tempo leva um porta-aviões a mudar de rota?

O Brexit foi o sinal de partida de que as coisas podiam correr muito mal.

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1. Desde o início do ano passado que a Europa tem muitos acontecimentos para digerir, a uma velocidade que choca de frente com a sua habitual lentidão. O Brexit foi o sinal de partida de que as coisas podiam correr muito mal. A eleição de Donald Trump foi um choque do qual as chancelarias europeias ainda não conseguiram recuperar. Nunca acreditarem que as duas coisas pudessem acontecer até acontecerem. O discurso do novo Presidente americano deve, a esta hora, estar a ser lido e relido à lupa, à procura de um palavra, de uma linha à qual a Europa se possa agarrar para evitar reconhecer o inevitável: o mundo acordou ontem de manhã para uma nova era. De contornos ainda indefinidos, é verdade, mas radicalmente diferente daquela em que a Europa se habituou a viver. E isso acontece precisamente quando o Ocidente, no sentido geopolítico e económico do termo, já esta a ser confrontado com a emergência de novos pólos de poder, alguns dos quais sem qualquer ligação com o liberalismo que inspirou a ordem americana, e até dispostos a questioná-la abertamente. Quando a China se afirma dia a dia, primeiro economicamente, agora estrategicamente; quando a Rússia põe em causa a ordem internacional, rejeitando as suas regras; quando um pouco por toda a parte os “homens-fortes” ganham terreno e as velhas e sólidas democracias ocidentais são desafiadas do seu próprio interior, deixou de ser possível olhar para o lado e tapar os ouvidos.

2. A grande questão é saber se a Europa ainda tem força para reagir, ou se se deixará arrastar pelos acontecimentos. Olhando para os últimos cinco ou seis anos, diríamos que não. As suas instituições estão desprestigiadas, os seus governos estão divididos como nunca estiveram, a lógica das economias do Norte impõe-se às do Sul, cavando uma linha divisória muito longe de estar superada (convém não esquecer que o interesse comum é a base da integração europeia, a par com os princípios políticos em que assenta, para lá da cultura, da economia, da religião e da História). Já dissecamos mil vezes esta crise, vista de forma diferente a partir de Berlim ou de Lisboa, mas que afecta dramaticamente a ideia de união. O Brexit antecipa um cenário de fragmentação que não se fica na tradição eurocéptica das Ilhas. Define uma tendência forte que já domina o debate político em muitos outros países e que tem pouco a ver com o mercado interno e tudo a ver com identidade. Theresa May anunciou no seu discurso de terça-feira passada que preferia fechar as fronteiras aos imigrantes europeus, mesmo que isso lhe custasse o acesso livre ao mercado único. “Pôs a soberania acima da economia”, resume Charles Grant do Centre for European Reform de Londres. É uma inversão dos valores do partido de Margaret Thatcher. Do lado esquerdo, a mesma inversão está a ser finalmente assumida por Jeremy Corbyn, rompendo com a tradição centrista que marcou o Labour desde os anos 90 do século passado. Também ele vai deixando cair a máscara europeia que teve de colocar na campanha para o referendo, para conquistar um partido ainda muito marcado pelo pela defesa da Europa. Ficam de fora a elite londrina e os liberais-democratas que ainda resistem. Quando se atravessa a Mancha as coisas estão longe de melhorar.

3. Na França, as primárias do Partido Socialista com sete candidatos em liça (e mais dois a correr por fora, Emmanuel Macron, ao centro e Jean-Claude Mélanchon, à esquerda) são um triste espectáculo de desorientação. As convicções são poucas. A tentação de dizer o que acham que os franceses querem ouvir é grande. A mistura revela-se intragável. Manuel Valls, ex-primeiro-ministro de Hollande e da ala reformista do PS, defende o proteccionismo europeu contra o proteccionismo francês em oposição ao proteccionismo francês do candidato mais à esquerda, Arnauld Montebourg. A cartilha do novo Presidente americano ajudará a acentuar este regresso à tradicional rejeição francesa da “mundialização”. À direita, o espectáculo não é mais animador. E não apenas porque Marine Le Pen continua em alta nas sondagens e já acrescentou à sua admiração por Putin o aplauso a Donald Trump. A direita republicana também não resiste ao passado, trazendo de volta De Gaulle e a sua Europa das Pátrias, do Atlântico aos Urais. François Fillon retoma a velha visão do general durante a Guerra Fria, tentando colocar a França (e a Europa) numa espécie de terreno “neutro” entre os Estados Unidos e a União Soviética (hoje, a Rússia). Mas a França também sabe que já não tem força política para liderar este caminho (ou outro qualquer), se não for possível partilhá-lo com a Alemanha. E, por enquanto, a Alemanha está muito longe dessa visão europeia.

4. Merkel liderou a reacção europeia à crise ucraniana com o apoio de Obama. O terrorismo, que atingiu a sério o seu país em vésperas de Natal, alimenta nos alemães a ideia de que é essa a primeira ameaça, e não a Rússia. A chanceler tem do seu lado grande parte do establishment da segurança e defesa, que continua a olhar para a relação transatlântica como a mais importante desde a fundação da RFA e da unificação, feita sob a protecção de Washington. O instinto de Merkel vai no mesmo sentido. O problema é que, mais uma vez, Trump lhe tira argumentos. Berlim não quer ouvir falar de proteccionismo, precisamente porque é a maior potência exportadora do mundo. Mas, tal como em França, a mancha do populismo nacionalista também lhe retira margem de manobra interna. Tem diante de si um caminho difícil para garantir o quarto mandato. A estratégia eleitoral do SPD ainda não é totalmente perceptível: de um lado, a necessidade de se demarcar da CDU de Merkel, com a qual governou nos últimos quatro anos; do outro, a tentação do Die Linke que lhe poderia garantir uma maioria que incluísse também os Verdes. Merkel tem uma escolha decisiva pela frente: ou acredita que pode disputar o terreno à extrema-direita, cedendo a algumas das suas bandeiras xenófobas; ou resolve combatê-la de frente em nome dos valores europeus, arriscando-se a perder algum apoio nas suas próprias fileiras. Obama já não estará disponível para lhe ir dar uma mão. Trump parece ter eleito a Alemanha como o seu “maior inimigo” na Europa. É preciso ler a entrevista que deu ao Bildt e ao Times para compreender até que ponto a sua visão contraria tudo o que o seu país fez pela Alemanha e pela Europa desde a II Guerra. A chanceler terá que decidir se está disposta, ou não, a pagar o elevado preço da liderança europeia (como a América sempre pagou). A pulsão identitária não respeita as fronteiras do seu país, apesar do passado. Obama tentou passar-lhe o testemunho. Olhando à volta percebe-se porquê. “Para além de serem o maior parceiro comercial da Alemanha, os EUA foram ao longo de décadas os garantes da sua segurança”, escreve o editor europeu do Politico, Matthew Karnitsching”. “Para Berlim preservar estes laços é de absoluta importância”. Merkel enviou a Washington o seu braço-direito para a política externa, Cristoph Heusgen, para tentar entender o que pensa a nova Administração. O problema é que não encontrou no staff de Trump ninguém que pertencesse ao velho establishment de segurança transatlântico dos dois partidos americanos. Diz o mesmo autor que se limitaram a escutá-lo polidamente.

Resta uma levíssima esperança. Mudar a política externa americana é como mudar a rota de um porta-aviões ou de um enorme porta-contentores: é uma manobra que leva o seu tempo. A mudança talvez não seja tão rápida e tão imediata como o discurso de posse prometia. 

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