Quando as paixões nacionalistas desafiam a realidade

A campanha do “sim” foi romântica, emotiva e visceral, associando um futuro idílico e as queixas contra a opressão de Londres.

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O referendo escocês é uma batalha entre sentimentos e pragmatismo. Foi dramatizado por dois factores: o momento em que acontece e o risco de contágio sobre outras regiões numa Europa em crise. A campanha do "não" aponta os evidentes riscos da independência para a Escócia, para a Grã-Bretanha e para a Europa. A campanha do "sim" desvalorizou todos esses argumentos, que interpretou como fantasmas ingleses e manipulação alarmista.

Por razões políticas e de segurança, é um péssimo tempo para fracturar a Grã-Bretanha, argumentou no Financial Times o analista Gideon Rachman. O ano de 2014 mostra que o mundo, e desta vez também a Europa, é um lugar incerto e perigoso. A UE passa uma fase crítica e está mais dividida, há uma guerra na Ucrânia, a Rússia passou a ser considerada uma ameaça, a França está à beira de uma crise institucional enquanto sobe Marine Le Pen. Ardem os "arredores" europeus do Mediterrâneo: o Médio Oriente está em decomposição perante a ofensiva jihadista do Estado Islâmico. A combinação entre uma secessão escocesa e um abandono britânico da UE tem o ar de um cocktail explosivo. E os Estados Unidos estão hoje mais longe.

A Catalunha entrou nas semanas decisivas. É extrema a crispação. Bruxelas teme que a Escócia radicalize a situação catalã e gere um contágio independentista que, além de desestabilizar os Estados, colocará novos problemas à coesão da UE.

O economista Francesc Trillas, da Universidade Autónoma de Barcelona, evoca o risco do enfraquecimento dos Estados no momento em que a sua função volta a ser reconhecida como vital perante as derivas do mercado. E evoca a História: "Desde a queda do Império Romano, a Europa viveu quase sempre no meio da fragmentação e do confronto entre nações, religiões e grupos étnicos." Após duas guerras mundiais, "a União Europeia é a tentativa de deixar para trás, e de uma vez por todas, a divisão histórica do Continente. Dá calafrios ouvir os soberanistas dos diferentes territórios europeus relativizarem este facto."

Uma secessão legal
Os escoceses não têm culpa da data, acordada com Londres. E é importante explicar que a Escócia não é a Catalunha. O acordo de Outubro de 2012, depois ratificado pelo Parlamento britânico, definiu o quadro legal do referendo. O paralelo mais correcto é o do Quebeque.

O soberanismo afirmou-se no Quebeque a partir dos anos 1960. Em 1976, o Partido Quebequense (independentista) ganhou as primeiras eleições na província e, em 1980, convocou um referendo sobre a secessão do Canadá: perdeu por 60% contra 40. Os independentistas voltaram à carga em 1995: com 49,4% dos votos, a sua proposta foi tangencialmente derrotada.

A maioria das democracias não admitem a secessão e declaram-se indivisíveis. Os soberanistas invocavam o direito à autodeterminação. Chamado a interpretar a Constituição, o Supremo Tribunal não reconheceu tal direito, previsto para as situações coloniais. Mas criou um quadro legal para a possibilidade de independência. Se o Quebeque manifestasse "por uma maioria clara" a vontade de se separar do Canadá deveria ser aberta uma negociação com as outras províncias e com o Estado Federal. Lucien Bouchard, então primeiro-ministro do Quebeque e promotor do referendo, reconheceu mais tarde: "Se o ‘sim’ tivesse ganho e se nós tivéssemos tentado uma secessão unilateral, teria sido o caos. E eu não quero o caos."

A diferença entre a Escócia e a Catalunha começa aqui: o respeito pela legalidade e um confronto sem risco de tragédia.

As emoções nacionais
As grandes questões que a independência levanta deixaram indiferentes os nacionalistas. Foram exaustivamente invocadas pelo campo do "não" e pelos meios financeiros. Uma vitória do "sim" pode traduzir-se num preço amargo para os escoceses. Por que se mostram tão indiferentes?

A extraordinária reviravolta nas sondagens tem uma explicação simples. A campanha do "sim" foi romântica, emotiva e visceral, combinando a miragem de um futuro idílico com o rol de queixas sobre a "arrogância" de Londres, retratada por vezes como potência "ocupante". O velho ressentimento contra o Partido Conservador — e a memória dos anos Thatcher — paga dividendos. "No boletim de voto do 18 de Setembro, o yes parece quer dizer: ‘Nunca mais viver sob um governo tory, para todo o sempre" — resume um comentador.

Foi uma celebração da "identidade nacional". Não é uma identidade étnica, mas a mitologia do passado gaélico ou do "Braveheart" galvaniza os teenagers (vota-se com 16 anos). Joga-se a oportunidade histórica de dar um Estado à nação. "Isto não é já para mim, mas para os meus filhos e netos. Queremos ser reconhecidos como uma nação."

Ao contrário da Inglaterra, a Escócia nunca foi conquistada, nem pelos romanos. A união que nasceu há 300 anos foi livremente acordada e começou pelo acesso ao trono de um rei escocês. Foi benéfica para ambas as nações. Os escoceses foram grandes actores do Império Britânico. Deles se dizia que eram "mais britânicos do que os ingleses". Que importa isso se o Império desapareceu?

Que é uma nação? A pensar na Catalunha, responde Miguel Herrero de Miñon, um dos "pais" da Constituição de 1978: "Uma nação é uma comunidade inventada, mas inventada porque há razões para isso, factores sobrecarregados de sentimentos. É uma comunidade que diz: ‘Nós queremos ser diferentes e queremos ser reconhecidos como tal.’ Isso é uma nação, um plebiscito quotidiano."

O referendo de hoje pode encerrar uma deliciosa ironia. Se o "sim" perder, os escoceses evitam os riscos da ruptura e passarão a cobrar as promessas que Londres agora lhes faz. Celebraram a "identidade nacional" e serão praticamente independentes. Hoje à noite, ou talvez amanhã, saberemos o que escolheram.

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