Putin cancela gasoduto South Stream, atrai a Turquia e tenta dividir a UE

Moscovo desistiu do seu gasoduto para a Europa do Sul. É um efeito da crise ucraniana. Mas a UE permanece dividida quanto à política energética.

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O anúncio do cancelamento foi feito na segunda-feira pelo Presidente Vladimir Putin durante a sua visita à Turquia AFP

O abandono do projecto do gasoduto South Stream pela Rússia reflecte e agrava as tensões entre Bruxelas e Moscovo a propósito da Ucrânia e coloca a União Europeia (UE) perante o desafio de rever a sua política energética.

"A evolução constante da paisagem energética é uma razão para a UE construir uma União da Energia, cuja prioridade é assegurar a segurança dos abastecimentos", declarou ontem Maros Sevkovic, comissário europeu da Energia. O gás russo é um tema que divide a UE e tem uma dimensão geopolítica, não apenas por o abastecimento energético ser uma questão estratégica mas também porque Moscovo utilizou o gás como arma contra a Ucrânia. Por sua vez, a Rússia ameaça desviar a sua produção para a Ásia. A decisão tende também a provocar uma reacção anti-Bruxelas nos Balcãs e em países como a Hungria.

O anúncio do cancelamento do South Stream (Corrente do Sul), destinado ao Sul da Europa, foi feito na segunda-feira pelo Presidente Vladimir Putin durante a sua visita à Turquia, numa conferência de imprensa ao lado do Presidente Recep Erdogan. Invocou como razão as pressões feitas pela Comissão Europeia sobre alguns países membros, designadamente sobre a Bulgária. As obras estão em estado adiantado. "Se a Europa não quer o gasoduto, ele não será construído. Vamos desviar os nossos recursos energéticos para outras regiões do mundo e a Europa deixará de receber os mesmos volumes da Rússia. Mas é uma escolha dos nossos amigos europeus."

Putin assinou recentemente um grande contrato de fornecimento de gás à China. E, na segunda-feira, assinou também outro contrato com Ancara, prevendo a construção de um segundo gasoduto para a Turquia e uma redução dos preços, de 6%, a Ancara. Foi esta uma dimensão importante da visita: utilizar o gás como forma de abrir uma brecha entre Ancara e a UE.

Globalmente, a Europa apenas depende do gás russo em 15%. Mas a dependência é desigual de país para país, a principal razão das divergências intereuropeias. O diferendo sobre o South Stream dura há muito tempo. Para Moscovo tratava-se de criar uma rota de abastecimento que contornasse a Ucrânia, tal como o gasoduto Nord Stream a contorna para abastecer a Alemanha.

O fim do Nabucco
Bruxelas exigia que, para autorizar as obras de conclusão do projecto, a Gazprom, que detém 50% da sociedade proprietária — ao lado da italiana ENI (20%), da francesa EDF (15%) e da alemão Wintershall, filial da BASF (15%) — se comprometesse ao respeito das suas regras, como a concorrência e o acesso ao gasoduto por terceiros. À falta de acordo, bloqueou o desenvolvimento dos trabalhos em território europeu e ameaçou com sanções alguns países membros — a Bulgária, a Grécia, a Itália, a Hungria, a Áustria, a Croácia e a Eslovénia, os mais directamente interessados no gasoduto.

O South Stream foi lançado por Putin em 2007, com o apoio activo do "amigo" Silvio Berlusconi e da italiana ENI, devendo entrar em funcionamento em 2016. Ao longo de 3.600 quilómetros, atravessaria o Mar Negro, levando o gás russo até aos países dos Balcãs e também à Itália, Hungria e Áustria. Em pouco tempo, Moscovo reuniu os apoios necessários. Declarou Putin em 2009: "A Rússia obteve luz verde de todos os parceiros para o projecto South Stream [que] se torna assim num grande projecto europeu."

Moscovo tinha um desígnio não apenas económico mas político: impedir que a Europa levasse em frente um projecto próprio. Este estava em estudo desde o princípio da década: era o gasoduto Nabucco. Com o apoio dos Estados Unidos, o Nabucco canalizaria, através da Turquia, gás proveniente do Mar Cáspio e da Ásia Central, do Azerbaijão e do Turquemenistão, podendo mais tarde trazer gás do Iraque. Visava quebrar uma excessiva dependência da Rússia. Para Moscovo, este projecto era intolerável. Até porque, a longo prazo, implicaria um risco "fatal" para Moscovo: o acesso do gás do Irão ao mercado europeu.

Depois de assinado o acordo de construção, em 2009, o Nabucco acabou por ser indefinidamente adiado por, na conjuntura da época, dificilmente ser rentável e por não despertar o entusiasmo de Berlim: com a construção do Nord Stream, a Alemanha optara por uma relação bilateral com a Rússia, em lugar de uma solução no quadro UE-Rússia. É também nesta base bilateral que Moscovo prefere negociar. E também a Turquia acabou por protelar o Nabucco, tentando associá-lo à negociação da sua adesão à UE. São tempos que já vão longe.

O poderio da Gazprom não inquieta apenas pela sua dimensão. É também um instrumento político e diplomático do Estado russo. "Para a Rússia, a energia não é apenas soft power mas hard power", disse há anos um analista. A combinação do Nord Stream com o South Stream dar-lhe-ia o controlo de dois dos principais mercados europeus.

O efeito ucraniano
A guerra na Ucrânia e a tensão entre Moscovo e as potências ocidentais mudaram por completo o quadro de 2007-2009. As sanções europeias à Rússia e o abandono do South Stream por Moscovo são peças de um mesmo puzzle. A Gazprom venceu a primeira batalha — o South Stream derrotou o Nabucco — graças ao apoio de grandes companhais europeias, o que se torna difícil nas "actuais condições políticas".

Ignora-se o que se segue. À UE agrada a ideia de que Moscovo não possa dispensar a rota da Ucrânia na distribuição do seu gás, não se libertando daquilo a que Putin chama "a chantagem de Kiev" sobre os gasodutos. Mas também a nova aproximação entre Moscovo e Ancara torna inviável um relançamento do Nabucco.

A decisão de Moscovo pode ter um efeito perverso na UE. Segundo o Financial Times, os países balcânicos ou a Hungria ficaram "en choque" com a decisão de Putin, tal como há reacções de mal-estar em Itália ou na Áustria. A questão está em saber se tais reacções se voltarão contra Bruxelas. Parece ser esse um dos objectivos de Moscovo.

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