PSOE abre crise de regime. Podemos ri

O Podemos exulta: a sua irrupção dilacerou o PSOE, o pilar do sistema saído da Transição de 1978, e esta crise arrasta todo o sistema político, que ele se propõe dinamitar.

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A mais acutilante análise da crise do PSOE vem da parte mais interessada: o Podemos. Visivelmente eufóricos, os seus dirigentes consideram que a irrupção do Podemos acelerou a implosão do PSOE e que o PSOE dilacerado arrastará consigo toda a configuração do regime saído da Transição de 1978.

"O PSOE é o pilar do regime de 1978", dizem. Para Pablo Iglesias, trata-se da "crise mais importante desde o fim da Guerra Civil, no partido mais importante do último século em Espanha". O Podemos tem interesse em se vangloriar. Mas não é original na análise: "A guerra socialista, o bloqueio da investidura de Rajoy e a tensão na Catalunha ameaçam a Espanha com um grave colapso institucional", resume Enric Hernàndez, director do El Periódico, de Barcelona.

Depois da queda do bipartidarismo e da dificuldade de fazer funcionar o novo sistema de quatro partidos, que paisagem política podemos imaginar se o PSOE se tornar num partido secundário e a disputa política se polarizar entre o Partido Popular e o Podemos? Sem uma força sólida na esquerda, capaz de fazer de ponte entre as classes populares e as elites, ou entre o centro e as nacionalidades, a democracia espanhola mudará de rosto.

O que está em jogo é muito mais do que a formação do governo. O problema também não se circunscreve à solução imediata da luta pelo poder na casa socialista, acabe por vencer Pedro Sánchez ou ganhem os críticos capitaneados Susana Díaz, "baronesa da Andaluzia" (à hora a que escrevo desconheço o desfecho). O que conta é que este confronto encerra um risco de desabamento ou de cisão do partido. Se Susana vencer, dizem os analistas que é provável que uma parte do eleitorado de esquerda se passe para o Podemos; se vencer Sánchez, muitos eleitores da área social-democrata abster-se-ão ou serão atraídos pelo Cidadãos.

O historiador Santos Juliá publicou ontem no El País um artigo intitulado "Crise, queda e cisão do PSOE". Evocava, para memória dos presentes, a ruptura do partido em 1935, de efeitos catastróficos para a democracia espanhola. Avisa: "Temos de remontar aos anos 30 do século passado para encontrar na História do socialismo espanhol um processo tão autodestrutivo como o que se desencadeou esta semana na cúpula do PSOE."

Para o La Vanguardia, a grande pergunta é: "Tem volta atrás o cisma no PSOE?"

Bloqueio

Para garantir a sua perpetuação no poder após as derrotas na Galiza e no País Basco, Sánchez recorreu a uma manobra, amarrando o calendário partidário ao institucional. Os adversários responderam, no dia seguinte, com "um assalto" ao poder, provocando as 17 demissões na comissão executiva. Ambas as iniciativas empurram a Espanha para terceiras eleições. Sánchez queimou todas as suas cartas e não pode contar com o Podemos. Por seu lado, os críticos perderam margem de manobra para se absterem na investidura de Rajoy, o que arriscaria uma cisão na bancada parlamentar.

Anota Enric Hernàndez: "Para um PSOE em chamas, concorrer a outras eleições gerais em Dezembro pode ser tão suicidário como colocar Rajoy na Moncloa mediante a abstenção, que acarretaria mais claudicações quando for urgente aprovar o orçamento ou os cortes sociais exigidos por Bruxelas. Não há um mal menor."

Se, como parece, a crise do PSOE estiver para durar, o bloqueio político permanecerá. Ao longo de Outubro, o Rei deverá consultar os representantes dos partidos para averiguar se no PP ou no PSOE há um candidato à investidura: a quem irá convocar como representante dos socialistas? E, com o PSOE em descalabro, é muito provável que Rajoy desista de voltar a pedir a investidura, esperando por eleições em Dezembro.

"Podemização" de Sánchez

Numa leitura superficial, Sánchez, que apostou num acordo com o Podemos, parece representar a esquerda do partido. Ele alimenta essa ficção através do "não a Rajoy", contra uma "oligarquia dos barões" disposta a abster-se no parlamento. Lembre-se, no entanto, que Sánchez foi "inventado" em 2014 pelos mesmos "barões", com Susana Díaz a dirigir a manobra, para bater um candidato que lhes desagradava, o basco Eduardo Madina, tido como mais à esquerda e pouco centralista para gosto dos mesmos "barões". Com o seu apoio Sánchez ganhou as primárias. Deveria ser apenas secretário-geral, não o candidato à chefia do governo. Para desgosto dos padrinhos, resolveu consolidar o seu poder no partido e ser candidato a presidente do governo.

Após as eleições de Dezembro de 2015, Sánchez travou os ímpetos do Podemos que proclamava a sua vontade de sorpasso, ultrapassar o PSOE nas urnas e assumir a hegemonia da esquerda. Depois das eleições de Junho, em que perdeu terreno para o PP mas evitou o sorpasso, mudou de rumo. Esperou que Rajoy falhasse a investidura para apresentar uma alternativa, esperando o apoio do Podemos, do Cidadãos e, discretamente, dos nacionalistas catalães. A sua dificuldade é que o Podemos pedia muito, o Cidadãos esquivava-se e os catalães decidiram anunciar um referendo unilateral sobre a independência em 2017. Sánchez não tem hipóteses.

A ameaça do sorpasso torna cada eleição uma agonia para o PSOE, explica, numa entrevista ao Monde, o politólogo Fernando Vallespín. "Ele não luta para prevalecer sobre a direita mas para não ser ultrapassado pelo Podemos. E a reacção de Sánchez consiste em deslocar o partido para o terreno do Podemos para tentar neutralizar o seu discurso."

A mesma análise faz a politóloga Máriam Martínez-Bascuñan: "De tanto se preocupar com o sorpasso, Sánchez agarrou-se a uma parte do discurso do Podemos em vez de se diferenciar dele. (...) Em lugar de trabalhar por uma alternativa, o PSOE ficou obcecado por travar o sorpasso do Podemos, pensando que o caminho para o evitar seria parecer-se cada vez mais com ele." O "não é não" a Rajoy é um mero expediente mas tornou-o o "novo ídolo da esquerda mediática digital".

Os dirigentes do Podemos têm razão em se vangloriar do seu papel na dilaceração do PSOE e na consequente corrosão do regime nascido da Transição, que se propõem dinamitar.

Vazio ideológico

Numa visão mais ampla, a crise do PSOE vem de muito longe, desde o fim do consulado de Felipe González. Foi agudizada pelo descalabro do governo de Zapatero. A questão territorial — das autonomias às proclamadas nações — nunca foi resolvida e envenena hoje a política espanhola. Por outro lado, o PSOE sofre o efeito da crise das sociais-democracias europeias, oscilando entre viragens à esquerda e à direita e cada vez com menos espaço de manobra perante os constrangimentos da crise económica e da globalização. É um partido quase sem debate ideológico e estratégico.

Resume o politólogo Jorge Galindo: "Definitivamente, o PSOE passou de ser ‘o partido que mais se assemelha à Espanha’ para ser aquele que acolhe todos os conflitos que atravessam o país."

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