Pressões e censura, um filme antigo

A suspensão de um filme devido a um ataque informático da Coreia do Norte reaviva um tema antigo.

Histórias de boicotes a filmes sob o pretexto de ofenderem sensibilidades particulares há muitas e em muitos países. Filmes que não são distribuídos ou exibidos, ou então são exibidos e as salas que ousam fazê-lo são atacadas, porque contra eles são movidas campanhas sob pretextos morais ou religiosos. Aconteceu em Portugal (exemplo: As Horas de Maria) e acontece também nos Estados Unidos, onde grupos e associações puritanas têm evitado que certos filmes (ou livros) cheguem a determinados lugares.

Sucedeu agora, porém, que o simples anúncio de um filme norte-americano provocou um ataque, não interno, mas externo. E vindo de uma ditadura, a Coreia do Norte. O filme, The Interview, que iria ser lançado nos Estados Unidos no dia de Natal (e com estreia marcada nas salas portuguesas a 29 de Janeiro) é uma sátira em torno de uma tentativa de assassinato do líder norte-coreano Kim Jong-un. Nos EUA, como se sabe, filmes com assassinatos de presidentes norte-americanos são uma banalidade há décadas (aliás, alguns com factos reais a sustentá-los), mas na Coreia do Norte os líderes só podem morrer de velhos, e sempre no poder; daí até a um ataque informático à empresa responsável pelo filme foi um pequeno passo. Informações estratégicas da produtora, milhares de emails, guiões ainda em preparação, foi tudo posto a descoberto na Internet. A empresa intimidou-se e suspendeu a estreia. O ataque dos hackers norte-coreanos foi, portanto, bem sucedido. O que levou Obama, na mesma conferência de imprensa onde fez o balanço de 2014 e falou da sua decisão quanto ao degelo das relações com Cuba, a lamentar a suspensão do filme. “Não podemos ter uma sociedade em que um ditador em algum lugar possa começar a impor censura aqui nos EUA. Porque se alguém é capaz de intimidar as pessoas para impedir o lançamento de um filme satírico, imaginem o que farão quando for um documentário de que não gostam, ou de notícias de que não gostam”. Há, nisto, um risco maior, a que Obama também aludiu: o da autocensura dos produtores em relação a temas politicamente mais delicados. Porém, sem quaisquer ataques norte-coreanos, a história do cinema (e das artes) está cheia dessas pressões e, na verdade, contrariá-las tem sido uma batalha constante para que a liberdade de expressão não seja subjugada às tais “sensibilidades particulares” (só a América, durante o macartismo, teve de lidar com inúmeros casos de autocensura). O que é novidade, aqui, é o facto de uma ditadura isolada do mundo ter conseguido entrar no “cérebro” de uma grande companhia norte-americana e desvendar os seus segredos. Se isso aconteceu no mundo das artes, quem garante que não possa suceder noutras áreas?

Suprema ironia, os hackers, auto-intitulados Guardiões da Paz (Guardians of Peace), felicitaram a companhia (a Sony Pictures) pela suspensão do filme. É verdade: está em causa a liberdade de expressão. E, neste como noutros casos, cabe aos produtores e criadores não se deixarem intimidar. Sejam quais forem os “guardiões” que aí venham.

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