Por outro paradigma de Europa

A única coisa racional a fazer-se hoje e depressa é começar a refundar a União Europeia, colocando-a em bases mais dignas.

Quando em 1962, o grande filósofo da ciência Thomas Kuhn procurou descrever como realmente aconteciam as revoluções científicas, deu conta de que mesmo nas mais duras ciências uma teoria errada poderia resistir indefinidamente à refutação, bastando para isso explicar todas as anomalias que a realidade lhe apresentasse através de hipóteses de socorro apenas constituídas para o caso. Por exemplo, descobrir-se que nem todos os cisnes são brancos, mas apesar disso manter-se a teoria de que sim, todos são brancos, e que os outros no fundo são também brancos, apesar de afectados por uma doença.

Thomas Kuhn considerava com naturalidade esta resistência e assumiu mesmo que este trabalho de resolução de quebra-cabeças é o trabalho da ciência normal. Mas apenas até ao momento em que, acumuladas tantas anomalias, quando o desfasamento com a realidade é de tal ordem, tem de se iniciar, por exigência da razão, uma discussão dos pressupostos mais fundamentais da teoria. Esse é o momento em que se entra num período de ciência revolucionária em que um paradigma perde a hegemonia e é destituído por outro, um paradigma emergente rival.

A União Europeia não é uma teoria científica, mas é ainda assim um projecto que se exige racional. Hoje, não temos dúvidas de que a sua crise é uma crise de racionalidade. Haverá velhos do Restelo, num palácio em Belém ou num governo em Berlim, que poderão insistir indefinidamente nas virtudes da austeridade e do condicionamento social e político de populações, até ao dia em que se retirarem de cena. Mas basta. Não é mais aceitável que se force o encaixe de peças num puzzle irresolúvel, sempre à custa da devastação social e da própria ideia de bem comum. Nem a austeridade resulta, nem esta Europa camisa de forças funciona. O que aconteceu no último fim-de-semana não deixou a Europa, muito menos a Grécia, melhores do que estavam. O acordo imposto à Grécia não pode ser seriamente levado como exequível. Como a preguiça dos povos nunca poderia ter sido uma hipótese admissível, também os termos deste resgate jamais servirão os seus próprios propósitos. Nem sequer o FMI — que tem pelo menos o mérito de se guiar apenas pelo racionalidade de um credor está disposto a continuar a farsa.

É, pois, tempo de seguir a lição de Thomas Kuhn: parar esta lógica de quebra-cabeças, pequenos passos, peças encaixadas custe o que custar num paradigma sem saída, e mergulhar, com coragem e generosidade, no debate dos pressupostos da própria União. A única coisa racional a fazer-se hoje e depressa é começar a refundar a União Europeia, colocando-a em bases mais dignas. Disso depende o bem estar de muitos milhões, se não de todos os europeus. E o paradigma emergente que tem de levar de vencida aquele que teima em castigar a realidade é até bem simples. Três pilares apenas, o político, o económico e o social: instituições europeias cuja capacidade decisora seja proporcional à sua legitimação democrática, dando motivos à constituição de um genuíno espaço público europeu até à data inexistente; a anulação de competição fiscal entre Estados-membros ou outras formas de competição que tirem vantagem dentro do espaço comum da União da desvantagem dos seus congéneres; a instituição de um sistema de solidariedade social europeu, com provisão a partir de um orçamento europeu significativo.

Se realmente avançamos para uma mudança de paradigma da União, há coisas que não são úteis. Primeiro, o mito da auto-suficiência, como se esse não fosse apenas uma variante da austeridade, com o grave sobrepeso do isolamento e da maior distância entre os nossos destinos o os destinos dos outros povos europeus. Segundo, também não é útil aos propósitos de mudança argumentar-se que não é possível reformar a Europa por dentro quando é exatamente apenas por dentro que a hegemonia da visão Schauble da Europa pode ser quebrada, isolada e vencida. Para não a conduzir a cinzas, a Europa tem de viver a sua crise. Certo é que o que não se resolve através do debate racional acabará por se resolver pela brutalização.

Filósofo, candidato às eleições legislativas pelas listas do LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR

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