Por mares nunca dantes navegados

Mário Centeno fez ao de leve uma carícia a Maria Luís ao dizer que, sim, o Tesouro tem os cofres cheios, mas agravou-se o risco de alteração da percepção de segurança da dívida portuguesa.

1. O mundo mudou nesta sexta-feira. Aconteça o que acontecer a seguir, depois do “Brexit” nada será como antes. Luis Villalobos lamentava, num texto de opinião aqui no PÚBLICO, que “Portugal dispensava mais más notícias”, mas a vida é o que é e há que encarar a saída do Reino Unido da União Europeia com inevitável ansiedade e obrigatória prudência. Podemos não saber ou sequer imaginar o que vai acontecer nos próximos meses ou anos, mas temos todos ingredientes à mão para perceber que não escaparemos à borrasca que se adivinha. O desafio é tão grande que por instantes as notícias sobre a execução orçamental no primeiro trimestre ou a consumação de um dos maiores crimes que os portugueses cometeram contra si próprios, o enchimento da barragem de Foz Tua, até parecem irrelevantes. Os estilhaços desta semana vão-nos acompanhar durante muitos anos e tudo o que pudermos fazer para prevenir as suas consequências vai revelar não apenas a nossa sensatez colectiva, mas também a nossa maturidade enquanto nação.

Sem o Reino Unido, a Europa perderá o essencial da sua feição atlântica e tornar-se-á ainda mais um projecto centrado na Alemanha, no centro e no leste. A nossa periferia acentuar-se-á e o desejo velado dos que defendem uma poda dos extremos mais pobres da Europa tenderá a ganhar peso. Portugal deixa de ter ao lado em Bruxelas o seu mais velho aliado e, mesmo que a memória só nos valha como exemplo, é impossível não encarar a perda de uma voz contra a corrente como um reforço do nosso isolamento e da nossa irrelevância. Mais grave ainda é que estas conjecturas têm por base a preservação do actual projecto europeu. Ora nada nos garante que a Europa como a conhecemos, com os seus defeitos, as suas hesitações e os seus limites, continue a existir. A História da Europa voltou a acelerar para parte incerta. A extrema-direita ganha terreno e já se fala em referendos em cinco países para testar a sua fidelidade à União. Todas as nossas certezas dos últimos 30 ou 40 anos estão em causa.

É aqui que tem de entrar o cenário mais terrível e angustioso de todos: o que será de Portugal nesta Europa em convulsão ou, num cenário extremo, num quadro pós-europeu? O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi talvez o político português no activo a entender a profundidade e o alcance destas incertezas. Ao convocar um Conselho do Estado, que decorrerá no dia 11 de Julho, para debater "a situação política internacional e suas incidências em Portugal", o Presidente deixa no ar o aviso implícito que é preciso antecipar os problemas. No curto prazo, há mais de 200 mil portugueses a viver no Reino Unido e a extinção da cidadania europeia e uma mais do que provável mudança das leis de imigração e de residência podem causar problemas a muitos; o Reino Unido é o nosso quarto maior cliente externo (para lá de uma das principais fontes emissoras de turistas); a criação de barreiras alfandegárias vai perturbar e, eventualmente, esvaziar esse importante destino das exportações nacionais.

Mais grave ainda, o “Brexit” voltou a desenterrar os pavores dos mercados da dívida. Mário Centeno fez ao de leve uma carícia a Maria Luis Albuquerque a dizer que, sim, o Tesouro tem os cofres cheios, mas o risco de uma alteração na percepção de segurança da dívida portuguesa, que faça subir as taxas de juro ou limite o acesso ao financiamento externo, agravou-se. Mais do que nunca, Portugal tem absoluta necessidade de ser capaz de viver com o que a economia produz. Mais do que nunca, o défice e a dívida são os tormentos com os quais não pode haver tolerância. O clima de incerteza que se adensou neste final de semana obriga-nos a ter ainda mais cautela. Pedir e obter ajuda externa, como em 2011, vai tornar-se mais difícil, senão mesmo impossível. Olhando para o estado de ânimo das opiniões públicas, não parece possível que os governos da Alemanha, da Áustria ou da Holanda tenham meios para autorizar um novo recurso de Portugal ao Mecanismo Europeu de Estabilidade.

Ao contrário dos hábitos dos últimos 40 anos, o país e o Governo vão ter de começar a trabalhar sobre cenários hostis. O de uma Europa polarizada pela Alemanha e concentrada em cinco ou seis países fortes do Norte da Europa. O do fim da Europa e do regresso das fronteiras, das moedas, das rivalidades nacionalistas e dos fantasmas que sempre as povoaram. Há dois anos, José Manuel Félix Ribeiro avisava uma plateia reunida no Centro Regional do Porto da Universidade Católica que a Europa era como um barco a atravessar uma zona de icebergues, pelo que, por cautela, o melhor mesmo era estarmos próximos dos botes salva-vidas. Se esse aviso feito há tão pouco tempo podia parecer para muitos uma extravagância, hoje ele faz todo o sentido. Há forças descontroladas à solta, que não podemos prever e ainda menos controlar. O melhor mesmo é prepararmo-nos para as suas consequências.

Mas, ao fazê-lo, não podemos dar de barato que a Europa é um caso perdido, uma batalha que já não faz sentido travar. Pelo contrário. Neste como nos grandes momentos, haverá um directório a organizar o despacho e a traçar directivas – a Alemanha já tratou de o constituir. Mas o Portugal europeísta, o que recusa o isolamento, que quer ser moderno, livre e democrático não pode subscrever o catastrofismo satisfeito exibido por alguns dos representantes do Bloco de Esquerda ou do PCP em relação ao referendo britânico. A Europa que se deslaça exige cuidados internos, mas merece empenho e combate, mesmo que esse seja um combate incerto.

2. Entre tantas propostas e contrapropostas, auditorias e auditorias forenses, comissões parlamentares de inquérito, pareceres e outros expedientes é difícil perceber ao certo o que quer o complexo partidário para a Caixa Geral de Depósitos. É difícil, mas não é impossível. Porque lendo com atenção o que cada um dos lados da barricada andou a dizer torna-se evidente que todos pensaram mais na sua pele do que no futuro da Caixa ou do país. Principalmente o PSD, logo acolitado pelo CDS, que tentaram encontrar numa comissão de inquérito o bálsamo retemperador para a sua triste forma de vida.

É bom que se saiba o que se passou na Caixa, mas não é preciso que se procure a verdade nas vísceras de um organismo que continua vivo. Uma coisa é discutir em público as supostas patranhas do senhor Salgado, as provadas malfeitorias no BPN ou o laxismo e a incompetência levadas ao zénite no caso do Banif; outra é adoptar o mesmo tipo de princípios para a Caixa. Pode-se autopsiar um organismo morto; deve evitar-se fazê-lo num banco que está em actividade e que precisa de estabilidade e de credibilidade para superar os seus problemas. É por isso que, ou a CPI imposta pelo PSD pega nos assuntos pela rama e não vai a lado nenhum, ou espreme a questão e faz emergir ao mesmo tempo o pus da infecção e sigilos bancários que abalarão a confiança que um banco requer. É bom que se apure tudo o que se passou e que se puna que deva ser punido. Mas, para chegar a estas conclusões, não é necessário lavar toda a roupa suja em público. Uma auditoria, ou, como propõe com mérito o Bloco, uma auditoria forense, é um caminho muito mais eficaz e discreto para se lá chegar.

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