Políticas de Merkel, o fim do pesadelo?

O número da revista alemã Der Spiegel de 30 de Janeiro traz na capa uma foto de Alexis Tsipras com a legenda "Der Geisterfahrer", que se poderá traduzir livremente por o “visionário” e à letra por o “condutor de espíritos”. Devido ao que se passou há 70 anos, os alemães criticam sempre os outros de um modo benevolente, nunca exprimindo abertamente o que verdadeiramente pensam.

A revista faz uma longa e informada análise, da autoria de nada menos dez jornalistas, sobre as consequências da vitória do Syriza na Grécia, que pode ser lida em inglês na versão online. Considerada de centro-esquerda, a Der Spiegel era tida, durante a Guerra Fria, como das poucas publicações alemãs que criticavam a ausência quase por completo de desnazificação na República Federal da Alemanha, onde milhares de quadros nazis ocuparam, pouco tempo depois da guerra, importantes postos em todos os sectores da sociedade. Isso pode ser confirmado nos relatos que Hanna Arendt fez do julgamento de Adolf Eichman no início dos anos 1960 e recentemente nas notícias divulgadas pelo The New York Times de que os Estados Unidos iriam deixar de pagar as pensões aos nazis, ainda sobreviventes, que levaram para a América depois da guerra, para nos serviços de informações combaterem os soviéticos, e que mais tarde regressariam à Alemanha. Noam Chomsky, numa entrevista a uma rádio americana em 1994, explica também a esse propósito How the Nazis won the war. Quando comecei a receber a newsletter diária da Der Spiegel, já depois do início da crise, pensei pois que iria encontrar uma análise objectiva da mesma. Mas desiludi-me em pouco tempo com a falta de espírito crítico da actual direcção sobre as políticas de Angela Merkel, impostas à Comissão Europeia de Durão Barroso, o principal culpado desta política antieuropeia, como sublinhei num artigo neste jornal em 23/11/13, onde defendi que se devia ter demitido de presidente da Comissão, o que teria originado um volte-face das políticas de empobrecimento da maior parte dos povos europeus.

Segundo a revista alemã, há três possíveis soluções para o confronto Merkel/Syriza. A primeira é a de a chanceler alemã resistir ao enfraquecimento do euro, que se está a desenhar com a recente decisão do BCE de injectar liquidez na economia europeia, e a tudo o que se está a passar em países como a Espanha, com grandes mobilizações das populações contra a austeridade, e em França e na Itália, onde há sinais de que os respectivos governos reforçam as suas críticas a estas políticas. O facto de a Suíça se ter desligado do euro é mais um sinal de que a desvalorização já está em marcha. Os alemães pretendem uma moeda forte, como era o marco, apesar de serem dos países mais exportadores do mundo, porque têm uma grande capacidade de poupança, por natureza e também pela grande competitividade da sua economia. Os investimentos que fazem com esses fundos, as suas pensões e outras poupanças têm desvalorizado imenso com a baixa das taxas de juro e ainda mais o serão com a injecção de liquidez que o BCE vai efectuar. Segundo a revista, esta primeira batalha parece perdida. O segundo cenário é o do pesadelo. O euro continuaria a desvalorizar, os Estados-membros deixariam de fazer reformas, e ao invés começariam a aumentar os seus défices investindo na economia, ficando a Alemanha como último garante e responsável, o que não seria aceite pelo Tribunal Constitucional alemão, nem pela população. E que redundaria no fim do euro. A terceira hipótese é a do compromisso. Uma eurozona na qual os Estados não poderiam endividar-se livremente, mas onde as duríssimas regras impostas pela Alemanha, leia-se Tratado Orçamental, seriam flexibilizadas nos períodos de recessão como o actual. Mas mantendo-se as reformas, para que as economias dos Estados endividados se tornassem competitivas. No fundo, o que propõe Juncker e provavelmente o que o Eurogrupo irá propor à Grécia. A bola ficaria do lado de Tsipras e do Syriza, segundo a Der Spiegel

Há décadas que conheço esta revista, uma das mais bem-feitas e mais bem informadas da Alemanha e da Europa. O que me espanta agora é a ausência de espírito crítico. Um seu director chegou a estar detido por suspeitas de colaboração com a Alemanha Oriental, há pouco mais de 50 anos, como foi assinalado recentemente nas suas páginas. Inúmeros artigos e entrevistas foram publicados nestes anos de crise, quando se começou a ver que as políticas de austeridade iriam redundar em fracasso, tentando a revista, embora indirectamente, defendê-las como contraponto a uma injecção de liquidez que não resultaria no crescimento desejado, sendo o caminho para tanto o que chamam reformas estruturais. Quando da entrevista com o Prémio Nobel Joseph Stiglitz, perguntaram-lhe se não achava que nos países, como nas famílias, não se deve gastar o que se não tem, ao que este respondeu que a economia de um Estado não funciona nem pode ser comparada com a das famílias.

Penso que não existe dúvida de que se trata do dobre de finados da política de Merkel, que está cercada por todos os lados. Até o governador do Banco de Inglaterra, segundo o The Guardian de 28 de Janeiro, veio lançar um forte ataque às políticas de austeridade da zona euro e apoiar a acção de liquidez que o BCE se prepara para lançar e que a Alemanha tudo fez para evitar. Para já não falar de todas as críticas que têm sido lançadas frequentemente do outro lado do Atlântico, provenientes de membros do Governo de Obama, como de entidades privadas e analistas credenciados. Por último, até na própria Alemanha, alguém como o antigo ministro Joschka Fischer, num texto publicado no Project Syndicate e transcrito pelo The Guardian, diz que a política de austeridade de Angela Merkel está agora “in tatters”, ou seja, em farrapos.

E que dizer do que se passa em Portugal, onde dois mentirosos compulsivos, e sem vergonha, vão lá para fora dizer que Portugal está a recuperar e que “conseguiu resolver os seus problemas”, afirmações obtidas de Passos Coelho pelo El País? Mesmo sendo verdade que houvesse um crescimento digno de registo, que até é inferior ao da Grécia e da Espanha, não há ninguém que explique ao primeiro-ministro que crescimento não é sinónimo de desenvolvimento, quando os dois outros índices do Desenvolvimento Humano, educação e saúde, estão ao nível dos países subdesenvolvidos? Aconselho Passos Coelho e Portas a passarem nas salas de espera das consultas externas do Hospital Garcia de Orta, em Almada, para verem a miséria em que vive o povo português. E que dizer de um Presidente da República que perante o descalabro dos órgãos da Justiça, com os tribunais parados durante meses, e dezenas de escolas sem iniciarem o ano lectivo, a juntar aos hospitais a rebentarem pelas costuras com pessoas a morrer nas urgências por falta de atendimento, ficou impávido e sereno? Está lá a fazer o quê? Apenas para receber os banqueiros falidos?

Parece-me que se está a desenhar um movimento na classe dos médicos e dos outros profissionais de saúde para fazer com que sejam apuradas responsabilidades criminais do que se está passar no sector da saúde, para que estes senhores sejam chamados a responder pelos seus actos premeditados de colocação na miséria de milhões de portugueses.

Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia

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