Política e poder na escolha do secretário-geral das Nações Unidas

A perpetuação da ONU em moldes fundamentalmente similares aos da sua criação, há mais de setenta anos, leva, em graus variáveis, à sua contestação.

1. Quando reflectimos sobre o mundo actual uma questão importante vem à mente: a Organização das Nações Unidas (ONU) é uma instituição internacional capaz de responder aos problemas de um mundo substancialmente diferente de 1945? A questão coloca-se, de forma evidente, no caso do Conselho de Segurança. Os seus membros permanentes — EUA, Rússia, China, Reino Unido e França —, continuam a ser o directório dos vencedores da II Guerra Mundial e os únicos com direito de veto. Hoje, a China, mas também a Índia, o Brasil, a Indonésia ou a África do Sul, entre outros, países com uma trajectória de ascensão, embora nem sempre linear, ambicionam outro papel. Quanto aos principais derrotados da guerra (a Alemanha e o Japão), são hoje países muito diferentes do que eram nos anos 1930 e 1940. Estamos perante democracias políticas, com economias das mais desenvolvidas no mundo e actuando o quadro do Direito Internacional, sem a lógica militar agressiva do passado. Se, apesar de tudo, devido à realidade política anterior a 1945, a China tem um lugar permanente no Conselho de Segurança e direito de veto, o mesmo já não se pode dizer das outras potências emergentes, nem dos derrotados da II Guerra Mundial.

2. A perpetuação da ONU em moldes fundamentalmente similares aos da sua criação, há mais de setenta anos, leva, em graus variáveis, à sua contestação. No cerne do problema está o Conselho de Segurança pelo seu poder na arquitectura institucional das Nações Unidas. Em causa está o alargamento a novos membros e o direito de veto. A questão é delicada. Enfrenta dois grandes tipos de obstáculos. Por um lado, a falta de vontade dos poderes instituídos abrirem mão dos seus privilégios. Em qualquer reforma significativa, as tradicionais potências europeias (Reino Unido e França), seriam, provavelmente, dos maiores perdedores. Tornou-se óbvio que caíram na hierarquia das grandes potências, seja ela feita por critérios militares, económicos, demográficos ou outros. Mas não é o único bloqueio à reforma das Nações Unidas. As rivalidades entre as potências aspirantes a um novo estatuto são outro factor de impasse. Alguns exemplos. As aspirações da Índia entravam no Paquistão e nos países islâmicos que o apoiam no conflito de Caxemira, tão antigo quanto a partição da Índia colonial britânica em 1947. Outro potencial membro permanente, o Japão, tem a forte oposição política de alguns países da Ásia, especialmente da China, devido a um contencioso que perdura desde a invasão japonesa da Manchúria nos anos 1930. Quanto ao Brasil, enfrenta a contestação da Argentina e do México à sua ambição de ser o representante natural da América Latina.

3. Nesta altura não é a reforma do Conselho de Segurança o tema político central, mas a escolha de um novo Secretário-Geral. As Nações Unidas têm um funcionamento complexo, nem sempre discernível pelo texto da Carta. Há um conjunto de práticas estabelecidas por vezes difíceis de compreender. É o caso do processo de eleição do Secretário-Geral. O texto da Carta é lacónico. Diz o art.º 97 que o "Secretário-Geral será nomeado pela Assembleia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança." Nada refere, por exemplo, se é necessária unanimidade dos membros do Conselho de Segurança, se este recomenda apenas um nome, ou mais do que um (deixando que a Assembleia Geral escolha), ou se há critérios adicionais que devem pautar essa escolha — rotatividade numa base regional, ou seja, das grandes áreas do mundo/continentes, não escolha de candidatos com nacionalidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança, igualdade de género, etc. Por sua vez, na parte que toca a Assembleia Geral, o dispositivo da Carta também não é, só por si, inteiramente líquido. O art.º 18 n.º 2 refere que as “decisões da Assembleia Geral sobre questões importantes serão tomadas por maioria de dois terços dos membros presentes e votantes.” Mas, no seu rol de questões importantes não inclui directamente a eleição do Secretário-Geral. Como o n.º 3 admite "a determinação de categorias adicionais de assuntos a serem debatidos por maioria de dois terços", é aí que se enquadra a escolha de um novo Secretário-Geral.

4. A eleição do sucessor de Ban Ki-moon, o actual Secretário-Geral originário da Coreia do Sul, está a suscitar um particular interesse em Portugal, devido à candidatura de António Guterres. Provavelmente a situação só é comparável à ocorrida em meados dos anos 1990, quando Freitas do Amaral foi escolhido para chefiar a Assembleia Geral da ONU. Mas o cargo de Secretário-Geral tem maior visibilidade, importância e prestígio. Anteriormente a Ban Ki-moon ocuparam o lugar, sucessivamente, Kofi Annan (Gana); Boutros Boutros-Ghali (Egipto); Javier Pèrez de Cuèllar (Peru); Kurt Waldheim (Áustria); U Thant (Birmânia / Myanmar); Dag Hammarskjöld; e Trygve Lie (Noruega). Apesar da diversidade de origens dos que ocuparam o cargo, há uma predominância de europeus/ocidentais, mas não ninguém do Leste europeu ocupar o lugar. Nem nenhuma mulher. A recente candidatura de Kristalina Georgieva (Bulgária), não é um acaso. Preenche ambos os critérios. Como é usual em altos cargos internacionais, ter perfil para o cargo, em termos de personalidade e de curriculum, é uma condição sine qua non. António Guterres, pela sua anterior experiência governativa em Portugal como Primeiro-Ministro e, mais recentemente, como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, dispõe desta inequivocamente. Mas não é líquido que isso seja determinante na escolha.

5. A escolha do Secretário-Geral é fundamentalmente um processo político e de poder. Em qualquer caso, ter o apoio dos membros permanentes do Conselho de Segurança, ou, pelo menos, não enfrentar a oposição aberta de nenhum deles, é essencial. Nos anos 1990, o contencioso entre os EUA e Boutros Boutros-Ghali, que impediu a sua reeleição para um segundo mandato, mostra o grau de compromisso e apoio político que é necessário obter. Claro que tudo isto pode levar a que não seja o candidato mais qualificado, nem a personalidade mais forte, a ser escolhida para o cargo, mas aquele que tem menos anti-corpos, ou consegue desagradar menos, primeiro ao Conselho de Segurança, que faz a recomendação; e, depois, à Assembleia Geral das Nações Unidas, que, formalmente, elege o Secretário-Geral. Naturalmente que isto não favorece muito a imagem das Nações Unidas. Apesar de tudo, e agora pela positiva, é a organização mais representativa da comunidade internacional. Os 51 Estados fundadores originais, deram lugar, em sucessivos alargamentos, aos 193 membros actuais, o último dos quais ao Sudão do Sul, que se tornou membro em 2011. Numa organização globalmente representativa, onde todos têm assento e podem falar com todos, há um preço a pagar por esse grande mérito. Não invulgarmente ocorre a paralisia política, ou, então, as decisões são tomadas por critérios minimalistas, mais ou menos obscuros, para conciliar interesses contraditórios. A escolha do Secretário-Geral não escapa a essa realidade.

Investigador

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