Polícias armados até aos dentes não garantem calma e tranquilidade à população de Ferguson, Missouri

Na mesma noite em que o Presidente Barack Obama apelou à reconciliação, registaram-se os mais violentos confrontos na cidade que vive quase em estado de guerra depois de um polícia ter morto a tiro um jovem desarmado.

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A presença policial está a inflamar os ânimos dos manifestantes em Ferguson, no Missouri Scott Olson/Getty Images/AFP

A chegada da Guarda Nacional a Ferguson, a pequena cidade do Missouri que vive em convulsão desde que um jovem negro de 18 anos foi morto a tiro por um agente da polícia, há dez dias, não intimidou os residentes que diariamente saem à rua para exigir justiça, ou os manifestantes de vários pontos do país que ali estão a protestar contra a discriminação racial e a violência policial.

Entre as mais de 70 pessoas que foram detidas pelos desacatos de segunda-feira à noite – a mesma noite em que o Presidente Barack Obama apelou à calma e à reconciliação, em Ferguson e no resto do país – havia gente de lugares tão distantes como Nova Iorque e Califórnia; só quatro são residentes de Ferguson, um subúrbio de St. Louis com 21 mil habitantes.

“Vamos consertar esta comunidade e vamos fazê-lo todos juntos. E eu não vou deixar que sejam os criminosos e os agitadores que vieram de todo o país, ou aqueles que vivem aqui, a definir o carácter desta cidade”, prometeu entre lágrimas o capitão da polícia estadual do Missouri, Ron Johnson, que é natural de Ferguson e foi chamado a casa para liderar a resposta policial aos protestos desencadeados pela morte de Michael Brown.

A cidade parece ter desenvolvido por uma espécie de dupla personalidade depois do trágico incidente que chamou a atenção da América para o fosso racial e social que mantém o país num permanente – e latente – estado de guerra. Durante o dia, impera a moderação e o respeito pela ordem institucional e a democracia: vigílias e marchas de protesto reúnem famílias inteiras e decorrem em segurança; grupos de voluntários encarregam-se de limpar as ruas; o comércio funciona e as igrejas oferecem consolo a quem tem raiva ou medo.

Mas à noite, vão-se as inibições e a razão: na rua fica quem está interessado em provocar, depredar, arranjar confusão. Duas trincheiras estão claramente delimitadas, com os manifestantes de um lado e as autoridades do outro, todos prontos para o confronto anunciado – um novo ritual diário que aparentemente ninguém procura evitar. O choque de segunda-feira, que fez chorar o capitão Ron Johnson, terminou com mais dois mortos, atingidos por tiros disparados do lado dos manifestantes.

Zona de guerra
O que mais tem impressionado nas imagens da violência nocturna nas ruas de Ferguson é a forma militarizada como a polícia se apresenta e comporta, com uniformes idênticos aos das tropas que combatem em zonas de guerra e a agressividade correspondente. Como dizia, muito a sério, o comediante John Oliver no seu programa satírico Last Week Tonight, polícias vestidos com fardas camufladas, armados até aos dentes e habituados a simulacros que envolvem jipes blindados e tanques de guerra, não oferecem nenhuma garantia de calma e tranquilidade à população.

A militarização da polícia, explica Amanda Fox no site Vox, começou na década de 90, com a criação de programas federais para a compra de equipamento militar pelas forças de polícia civis envolvidas no combate ao tráfico de droga (primeiro) ou em acções de contra-terrorismo (já depois do 11 de Setembro). O fenómeno, que vários especialistas em segurança consideram “extremamente perigoso”, levou as tácticas militares para as acções de policiamento: a multiplicação de forças especiais de intervenção (as famosas equipas SWAT) é a consequência mais directa da expansão destes programas.

Em localidades pequenas e onde o número de polícias não chega sequer à centena (como é o caso de Ferguson), o acesso a esse tipo de material não é acompanhado por treino ou formação militar, o que aumenta o risco para civis e para os próprios agentes. Documentos recolhidos pela Associação para as Liberdades Cívicas da América (ACLU, na sigla em inglês) provam, por exemplo, que dezenas de pessoas morreram “desnecessariamente” no decurso de acções de notificação ou de execução levadas a cabo por equipas SWAT, incluindo idosos e crianças.

Como escreve a The Economist, a frequência com que os agentes da polícia disparam as suas armas já não causa espanto na América. “Em 2013, foram mortos a tiro 30 polícias, uma pequena fracção dos mais de 9000 homicídios com armas de fogo que acontecem todos os anos. Junte-se a esse dado a cultura policial hiper-militarizada, e a história de tensões raciais fortemente arreigadas, e aí estão as razões que explicam porque tantos civis são atingidos por polícias”, lê-se no blogue da revista dedicado à realidade norte-americana.

Mas não é só o equipamento da polícia que está a “incomodar” a opinião pública e publicada. O recurso ao gás lacrimogéneo como método de dispersão dos manifestantes (uma prática comum em países que os EUA habitualmente censuram pelo desrespeito de direitos humanos) também tem levantado polémica. Segundo Anna Feigenbaum, na revista The Atlantic, “nestes 100 anos desde que foi desenvolvido, o gás lacrimogéneo, que é publicitado como uma substância inofensiva, já provou frequentemente ser fatal, asfixiando crianças e adultos e provocando abortos e ferimentos variados”.

A jornalista recorda que está proibido pela Convenção das Armas Químicas, mas que a sua utilização pela polícia civil, em cenários urbanos, tem aumentado exponencialmente. “Para as autoridades, pode ser a solução mais barata para responder à instabilidade social. Mas mais do que resolver as tensões, exacerba-as”, refere.

À espera de um Grande Júri
Esta terça-feira, o Procurador-Geral Eric Holder foi até Ferguson para se inteirar dos detalhes da investigação em curso às circunstâncias que rodearam a morte do jovem Michael Brown, que estava desarmado quando foi atingido por um agente da polícia. A visita foi anunciada por Barack Obama na véspera: o Presidente, que está de férias, explicou que tinha optado por não viajar ele próprio até ao Missouri para não desviar ou sobrecarregar os recursos da polícia com a obrigatória operação de segurança presidencial.

Uma terceira autópsia foi solicitada pelas autoridades federais que. As duas perícias já realizadas, pelas autoridades do Missouri e por um especialista independente contratado pela família de Michael Brown, coincidiram na conclusão de que o jovem foi atingido seis vezes. O ferimento fatal foi um dos dois tiros disparados à cabeça.

Segundo avançou a Associated Press, um grande júri poderá ser constituído já na quarta-feira para decidir se Darren Wilson, o agente de 28 anos que atirou, deve ser acusado pela morte de Brown. A acusação será apresentada pelo Ministério Público do condado de St. Louis, que está debaixo de fortes críticas pela forma como conduziu a investigação e cuja imparcialidade foi contestada pelo neto de Martin Luther King, que partilha o nome com o avô e como ele é activista pelos direitos da população afro-americana.

Especialistas em assuntos jurídicos dizem que esse deverá ser o mais mediático de múltiplos processos que o caso deverá desencadear, e que vão desde pedidos de indemnizações por parte dos comerciantes afectados pelos motins, até queixas por alegada violação dos direitos cívicos interpostas contra as forças policiais.

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