Podemos: primeira prova superada

Os espanhóis mantêm as suas divisões ideológicas, mas parecem concordar na necessidade de regeneração política.

As eleições andaluzas foram as primeiras num ano de intensa actividade eleitoral para os espanhóis. Em Maio, haverá autárquicas em todo o país e autonómicas nas comunidades “não históricas”; em Setembro, previsivelmente, será eleito o parlamento catalão; e, em Novembro, terão lugar as eleições legislativas.

Se os prazos previstos forem cumpridos, as legislativas serão o corolário de uma série de actos eleitorais que, a crer nas sondagens, prometem alterar o sistema político-partidário espanhol.

O voto dos andaluzes constituiu uma primeira confirmação do processo de mudança que está em curso em Espanha. Como todas as sondagens indicavam, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), no poder na Andaluzia desde 1982, venceu as eleições, mantendo os mesmos 47 deputados (sobre um total de 109) que tinha no parlamento regional eleito em 2012. O Partido Popular (PP), que perdeu mais de meio milhão de votos e 17 deputados, também viu confirmadas as previsões apontadas por todos os estudos de opinião. Os grandes vencedores foram os partidos que ficaram em terceiro e quarto lugares: o Podemos (mais de 590 mil votos e 15 deputados) e o Cidadãos (cerca de 369 mil votos e nove deputados).

Para compreender esta transformação, deveremos analisar o resultado de domingo passado à luz do histórico das eleições andaluzas: a décima legislatura do parlamento autonómico contará com o menor número de sempre de deputados dos dois maiores partidos, que passam de 97 a 80 eleitos e de um total de 80% dos votos a 62%. Este é o resultado mais baixo dos populares desde 1990 e, apesar da vitória por maioria relativa, é o pior resultado de sempre dos socialistas em percentagem de voto. Curiosamente, nas eleições de 2012, ao segundo lugar do PSOE (que se manteve no governo em função de uma coligação pós-eleitoral com a Esquerda Unida) corresponderam mais 118 mil votos (cerca de 4%) do que nas eleições deste ano.

Esta autêntica revolução eleitoral, porém, não deverá limitar-se ao Sul de Espanha. Há alguns meses que se vem tornando evidente que o PP não será capaz de renovar a maioria absoluta no parlamento espanhol e que poderá perder uma boa parte do poder regional e local. Por outro lado, o PSOE não é visto como alternativa efectiva pelo eleitorado. O resultado andaluz, apesar de ter alentado as bases e os líderes socialistas, demonstra uma incapacidade do partido para segurar o próprio eleitorado e para ir buscar votos ao PP e à abstenção. A participação, de resto, subiu cerca de 4%, face a 2012, permitindo especular sobre a possibilidade de o eleitorado manifestar o seu descontentamento através do voto e não da abstenção.

O fim (pelo menos por agora) da bipolarização política em Espanha surgiu de uma forma relativamente inesperada, nas últimas eleições europeias. Depois de mais de três décadas de estabilidade relativa ditada por um quadro político bipolarizado, a lista do Podemos, um movimento muito recente nascido no âmbito da contestação às políticas de austeridade, alcançou o quarto lugar, com mais de um milhão de votos e cinco eleitos sobre um total de 54 eurodeputados. Nada fazia prever um fenómeno desta dimensão.

A consciencialização forçada acerca das consequências da crise para o panorama político foi acompanhada, nos meses subsequentes às europeias, pela subida do Podemos em todas as sondagens, à custa dos potenciais resultados dos partidos que já se encontravam no terreno. O movimento começa, então, a estruturar-se em partido político e, aproveitando a projecção mediática dos seus principais promotores, ganha notoriedade e torna-se incontornável. Nas mesmas eleições, o Cidadãos, partido fundado em 2006 sob o signo da contestação ao nacionalismo catalão, começa a adquirir dimensão nacional, obtendo quase meio milhão de votos e conseguindo eleger dois eurodeputados. O resultado, conjugado com uma subida nas sondagens, será determinante para que os seus dirigentes comecem a alargar um projecto centrado na Catalunha a todo o Estado.

Ao que tudo indica, o eleitorado espanhol deverá alterar o seu comportamento nas próximas eleições. Convirá aos dois principais partidos perceber o que está na origem desta mudança:

1. As eleições de Novembro serão as segundas legislativas em contexto de crise, o que significa que o PSOE e o PP já se viram forçados a implementar medidas de austeridade, facto que debilita a alternância como mecanismo de punição governamental.

2. Além da crise, os fenómenos de corrupção que afectam sobretudo o PP (e o PSOE, parcialmente, na Andaluzia), com fortes indícios de existência de uma contabilidade paralela no partido do governo, abrem espaço a um discurso populista de ruptura com os partidos tradicionais.

A conjugação das suspeitas de corrupção e de favorecimento de uma classe política com uma economia com quase cinco milhões de desempregados poderá ser uma das explicações para o fenómeno Podemos. Os seus dirigentes têm consciência desta realidade e não escondem uma narrativa neomarxista de contraposição do explorador (político) pelo explorado (cidadão): utilizam frequentemente o termo “casta” para classificar os políticos ditos tradicionais, aos quais se contrapõem como regeneradores sociais. O momento em que os líderes do Podemos se apercebem da receptividade do eleitorado à mudança é acompanhado pelo abandono de um discurso abertamente de esquerda em favor de fórmulas mais neutras que transmitam uma ideia clara de ruptura com posicionamentos tradicionais.

Apesar desta tentativa de distanciamento, os alinhamentos internacionais do Podemos (proximidade em relação ao Syriza e aos governos venezuelano, equatoriano e boliviano), as suas propostas e o seu discurso colocam-no claramente à esquerda do espectro político. É, justamente, a percepção deste alinhamento que poderá ter permitido ao Cidadãos começar a crescer: o eleitorado de centro-direita descontente com o PP não deverá estar disposto a votar no PSOE e menos ainda no Podemos. O capital acumulado pelo Cidadãos na sua luta contra o nacionalismo catalão e em defesa da manutenção da Catalunha em Espanha permitem-lhe ser encarado como uma alternativa eleitoral efectiva.

Não seria, assim, de estranhar que, mantendo-se as actuais circunstâncias, a uma fuga do voto socialista e comunista para o Podemos correspondesse uma fuga do voto conservador para o Cidadãos. Os espanhóis mantêm as suas divisões ideológicas mas parecem concordar na necessidade de regeneração política, o que se deverá materializar na entrada de novos players na política nacional. Ao que tudo indica, a multipolarização veio para ficar.

Professor na Universidade Autónoma de Lisboa, professor convidado no ISCTE-IUL

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