Pode a Ética salvar a Grécia e a Europa?

Num artigo de opinião, publicado no New York Times no mesmo dia em que reunia com o Eurogrupo, o ministro das Finanças da Grécia invocou a ética kantiana para enfrentar a tirania das consequências imposta pela troika e pelos credores. O cenário de um David kantiano enfrentando um Golias utilitarista pode entusiasmar a mole imensa das vítimas da austeridade, mas é uma encenação condenada ao fracasso. Pode a Ética salvar a Grécia e a Europa?

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) ousou pensar como poucos esses tempos sombrios que cobriram a Europa entre 1933 e 1945 e que a atual violência no coração e nas fronteiras dessa mesma Europa parece prenunciar de novo.

Apesar de proibido de ensinar e falar publicamente pelo regime nazi, deixou-nos uma análise lúcida sobre o "fiasco das pessoas sensatas" que, com os seus conceitos claros e distintos, não conseguiam apreender o real nem enxergar o abismo do mal que se estendia perante as pessoas e os povos para os engolir numa violência sem precedentes.

A sua prisão, a 5 de Abril em 1943, interrompeu a redação do manuscrito da Ética onde defende que tanto a ética do dever (de inspiração kantiana) como a ética do resultado (de inspiração positivista ou utilitarista) permanecem à superfície dos fenómenos, revelando-se igualmente impotentes para enfrentar o mal que ensombra as pessoas e as comunidades.

A raiz desta impotência é o facto de ambas as éticas valorizarem "só o indivíduo isolado como eticamente relevante, só o absoluto e universalmente válido como norma, só a decisão entre o bem e o mal claramente reconhecidos como decisão ética".

Quando um agente político assume, como Yanis Varoufakis, uma destas posições éticas como influência determinante, o seu juízo fica prisioneiro dessa abstracção: ele, isolado da situação, pondera a justeza de uma acção usando como critério unívoco do bem e do mal a correspondência entre essa ação e uma ideia. Ora, quer essa ideia seja o imperativo categórico kantiano quer seja um dos princípios utilitaristas (maior felicidade, menor infelicidade, maior utilidade, imparcialidade, melhor conjunto de regras ou meu melhor plano), ela está condenada a fracassar na sua missão de eliminar as ambiguidades que dificultam a distinção entre o bem e o mal, o certo e o errado. Fracassará porque o indivíduo isolado não existe, porque o mal aparece mascarado de bem e o bem é visto por vezes como um mal e ainda porque não há um critério absoluto universalmente válido.

E se insistir neste posicionamento, o agente político ficará também prisioneiro de uma ficção. Primeiro, porque ninguém se consegue isolar de todo da comunidade humana: a história nasce da percepção de um destino comum e da responsabilidade pelos outros homens e mulheres. A norma do agir racional e responsável não é, pois, uma ideia ou princípio universalmente válido mas o próximo concreto para os quais e em nome dos quais o agente político toma decisões. Em segundo lugar, porque não se trata de imprimir ou impor à realidade uma lei qualquer, mas antes de apreender aquilo que é necessário, que é um mandato, na situação histórica concreta.

O aviso de George Santayana colocado em Auschwitz vale também para nós: aquele que não se lembra da história está condenado a vivê-la de novo. Adolf Eichmann, o criminoso nazi, invocou Kant para justificar o papel obediente que teve no Holocausto. Os dirigentes americanos justificaram Hiroshima e Nagasaki com princípios utilitaristas semelhantes aos que os nazis usaram para justificar a eutanásia de adultos e crianças portadoras de deficiência.

Como notou Bonhoeffer, a máxima justificação para o homem de consciência está no sentimento do dever cumprido, na impressão agradável de dar a si mesmo e de obedecer a uma regra que promete ganhar a adesão de todo e qualquer agente racional. Ora, este comprazimento é uma inclinação irresistível para o homem do dever como para o homem dos resultados, fazendo com que ambos acabem por obedecer a imperativos mesmo diante do diabo, sobretudo quando travestido de pessoa que cumpre as suas obrigações.

A única saída aceitável para Yanis Yaroufaquis é, pois, olhar para o futuro e entender o seu papel no jogo das negociações em termos de um agir representativo: é um representante que unifica no seu eu o eu de muitos homens, mulheres e crianças forçados a vidas indignas pela tirania das circunstâncias. Ainda que isso signifique carregar a culpa de dividir a Europa, de abandonar o euro ou de irritar os parceiros por ter relançado a ideia de um perdão parcial da dívida grega.

Aos demais parceiros, não basta o mea culpa. O aviso de Santayana lembra que é preciso escolher entre reviver o passado ou arriscar juntos por um futuro onde a dignidade seja a nossa casa e a nossa causa comum.

Docente de Filosofia, Conservatório de Música de Calouste Gulbenkian de Braga

O autor escreve segundo as regras do novo Acordo Ortográfico

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