Pavlov na Síria

A guerra no Médio Oriente deixou de ser um conflito sectário regional e transformou-se numa guerra mundializada, nas fronteiras da Europa.

A intervenção da Rússia na Síria não só agrava a guerra, e a consequente tragédia humanitária, aumentando o número de refugiados, como é um perigo para a paz mundial. Alguns há, no entanto, que vêem na actuação russa um potencial de mudança no conflito sírio. Quais as razões que levam a louvar a atitude de um nacionalista autoritário como o Presidente Putin quando acode a um criminoso de guerra como Assad, sobretudo quando tais louvores provêm de pessoas que, regra geral, afirmam a sua adesão plena a valores como a liberdade e os direitos humanos?

Creio que a explicação pode ser encontrada nas teorias de outro russo, Ivan Pavlov e a sua teoria dos reflexos condicionados – quanto maior o antiamericanismo, maior é o apoio a Putin e a Assad. Esta posição não decorre de uma análise informada do conflito sírio, mas do facto de os Estados Unidos apoiarem, ainda que timidamente, a oposição a Assad. Ou seja, diz-me de que lado estão os americanos que eu estarei sempre com os seus adversários. Verdade seja dita que o mesmo tipo de reflexo se observa em pró-americanos, como vimos, em Portugal, com o apoio à decisão de George W. Bush de invadir o Iraque.

O argumento é que os Estados Unidos são responsáveis pela guerra na Síria, na medida em que querem derrubar Assad, um nacionalista árabe, antiamericano e anti-Israel, como já tinham feito com Saddam Hussein e Kadhafi.

Têm razão os críticos da política americana quando declaram que a intervenção no Iraque foi o primeiro passo para a desintegração do Médio Oriente. É indiscutível a responsabilidade americana na desintegração do Iraque. A invasão foi um puro exercício arbitrário de poder militar que desintegrou o Iraque em três entidades: a zona controlada pelo poder xiita pró-iraniano, o Curdistão, quase independente, e o centro sunita, onde prosperou o ISIS.

Na caótica Líbia, de dois governos e mil milícias, a responsabilidade americana não está no apoio prestado a franceses e ingleses para impedir o assalto a Bengasi e proteger os seus cidadãos, mas sim na transformação da intervenção, quando passou a ter uma dimensão de mudança de regime. Os Estados Unidos têm também responsabilidade, como já reconheceu o Presidente Obama, por não terem defendido o envio de uma força da manutenção da paz, após a queda de Kadhafi, que ajudasse à reconstrução do país.

Os americanos não são certamente os responsáveis da guerra na Síria, muito menos por excesso de intervencionismo. No início da revolta democrática e pacífica contra Assad, os Estados Unidos manifestaram o seu apoio à oposição. Em Agosto de 2011, Obama declarou que “o Presidente Assad se devia demitir”. Esta declaração surgiu depois de meses de hesitação perante a repressão brutal dos manifestantes – como relatou a comissão de inquérito para a Síria, dirigida por Paulo Sérgio Pinheiro, as provas recolhidas indicam que “houve graves violações dos direitos humanos cometidas pelo militares sírios e as forças de segurança desde o começo dos protestos em Março de 2011”, com 5000 pessoas assassinadas até ao fim desse ano. 

Os manifestantes ficaram à espera de uma intervenção ocidental como a que tinha travado a repressão na Líbia, em nome do princípio da responsabilidade de proteger, mas, tal como Godot, nunca veio.

A Líbia tornara-se no contra-exemplo. Nas Nações Unidas, as potências não ocidentais que tinham deixado aprovar a resolução que legitimou a intervenção na Líbia em nome da responsabilidade de proteger opunham-se a qualquer condenação do regime de Damasco.

O Presidente Obama declarou que a utilização de armas químicas contra os opositores era a linha vermelha que desencadearia a intervenção. O regime violou a linha vermelha, bombardeando zonas controladas pela oposição, nos arredores de Damasco, com gás sarin, mas o Presidente americano agarrou-se à necessidade de ouvir o Congresso para não ter que intervir no Médio Oriente. A França já tinha os aviões prontos para descolar quando Obama avisou François Hollande de que o ataque não teria lugar. Obama terá dito “não sou George W. Bush” e “não tenho apoio do Conselho de Segurança”. É o célebre 31 de Agosto que estrategos franceses, como François Heisbourg, consideram marcar o fim da credibilidade do poder de dissuasão americano.

Os que vêem no intervencionismo americano a causa de todos os males poderiam ponderar se o verdadeiro problema não decorre, bem pelo contrário, do seu quase desinteresse pela questão síria. As acções americanas contra o ISIS, na Síria, foram decididas para travar o seu avanço no Iraque e a ameaça que representa para o poder em Bagdad. O apoio norte-americano às forças da oposição síria foi sempre tímido e assim continuou; mesmo quando Obama se convenceu de que precisava dos oposicionistas para travar o ISIS, continuou a recusar fornecer os mísseis antiaéreos que dificultariam os bombardeamentos das cidades sírias e criariam problemas graves à Força Aérea russa.

A tão aplaudida estratégia russa não tem como objectivo conter o ISIS, mas sim as forças de oposição do Exército Sírio Livre, apoiado pelo Ocidente, e das diferentes milícias islâmicas, que ameaçavam o poder de Damasco. A intervenção militar aérea russa, apoiando as forças terrestres iranianas, até pode conseguir proteger o regime de Assad e evitar a sua queda, mas não irá alterar o statu quo, ou seja, Damasco não será capaz de controlar todo o território e a oposição não conseguirá tomar o poder. Garantida a sobrevivência de Assad, a Rússia procurará pesar numa solução diplomática, na esperança de que a oposição enfraquecida abandone a sua reivindicação de uma Síria unida e democrática.

O ISIS tem sido preservado e utilizado pelo regime e pela Rússia como argumento para procurar o apoio do Ocidente contra o inimigo comum, mas o resultado da intervenção tem sido o enfraquecimento da oposição anti-ÍSIS e o aumento do recrutamento de combatentes contra os herdeiros da União Soviética. Lembremo-nos que foi no Afeganistão que os jihadistas tiveram o seu momento de glória contra Moscovo.

A guerra no Médio Oriente deixou de ser um conflito sectário regional e transformou-se numa guerra mundializada, nas fronteiras da Europa, sem que a União Europeia tenha qualquer peso na sua resolução. Deveria por isso ser incentivo suficiente para a União relançar a sua política externa e de segurança comum. Da crise do euro e da recusa das políticas alternativas à austeridade, como o debate actual em Portugal mostra, às dificuldades gritantes em encontrar respostas comuns à questão dos refugiados, a falta de solidariedade ameaça os fundamentos da União. Neste quadro, o que se pode questionar é se a desintegração do Médio Oriente não é mais um sinal dos riscos de desagregação que a própria Europa enfrenta. Mais uma vez, caberá à sociedade civil democrática europeia, fortemente empenhada na ajuda humanitária à Síria, demonstrar que continua a ser a melhor esperança para o futuro da União.

Director de Projectos no Arab Reform Initiative (ARI)

Sugerir correcção
Ler 33 comentários