Paris: o triunfo da razão

Nesta hora de revolta e de desejo de vingança, é vital que todos os franceses, e em particular os seus dirigentes políticos, façam triunfar a razão.

A minha cidade foi atacada. A cidade onde vivi longos anos, onde vive a minha filha e os meus netos. A cidade de que guardo tantas memórias, boas e trágicas, que são a minha vida. Mas mesmo assim, ou talvez precisamente por Paris estar tão presente na minha vida, urge não ceder à emoção e deixar triunfar a razão. Como diz Tucídides, “Quem pondera a decisão certa é mais temível perante o inimigo do que quem se precipita em usar a força bruta”. Triunfo da razão que uma notável parisiense, Jacqueline de Romilly, dizia ser a essência da democracia e do pluralismo ateniense.

Nesta hora de revolta e de desejo de vingança, é vital que todos os franceses, e em particular os seus dirigentes políticos, façam triunfar a razão.

Os monstruosos atentados em Paris não são um ataque contra a civilização ocidental, perpetrados por um grupo que a decidiu combater, confirmando assim a teoria do choque das civilizações. Estes ataques são a dimensão europeia, nomeadamente francesa, da guerra do Médio Oriente.

Foi o filósofo parisiense Edgar Morin quem disse que o Médio Oriente era o paiol do mundo e esse paiol explodiu. Começou a explodir com a precipitação americana em usar a força bruta no Iraque, depois do 11 de Setembro, uma decisão tudo menos certa; continuou na guerra sem fim na Síria, na Líbia e no Iémen e está já em lume brando no Egipto. Atinge agora a Europa, num conflito que continuará a ser travado, também aqui, se a comunidade internacional não puser termo à guerra na Síria.

A primeira chave para a paz está, hoje, na Síria. Os ataques contra Paris mostram que a Europa, e particularmente a França, são palco da guerra que se trava no Médio Oriente. Atingido nas suas posições pelos ataques de uma coligação internacional, de que a França faz parte, o Daesh ataca em Paris. Por isso é hoje ainda mais claro que a prevenção relativamente a ataques futuros, mais do que reforçar o trabalho dos serviços de informações, exige que a comunidade internacional seja capaz de construir uma solução para a guerra sectária da Síria. E a solução está na política que a França tem defendido: nem Assad, nem Daesh. Não há solução para o Daesh sem uma solução política para a Síria (e vice-versa). Seria um erro grave atribuir a um criminoso de guerra como Assad a representação da comunidade internacional na luta contra o Daesh na Síria.

A segunda chave está na solidariedade intercultural. Os europeus não podem cair na armadilha do Daesh e ver estes acontecimentos pelo prisma de um suposto conflito entre muçulmanos e franceses, como se a França fosse o último baluarte dos valores do secularismo e da liberdade. Os crimes de Paris não contra a “nossa” civilização, e nem contra os valores da França, são contra a nossa Humanidade comum. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são valores que se universalizaram e são hoje a esperança da maioria da humanidade, nomeadamente no mundo muçulmano. A França não está isolada e tem a solidariedade de todos aqueles que, no sul do Mediterrâneo, aspiram à liberdade. No momento dos ataques estava em Marrocos, numa conferência sobre liberdade de informação digital, e foi bem perceptível a emoção dos especialistas árabes presentes, bem como a preocupação com as consequências para a liberdade nos seus próprios países, perante os actos de terror em Paris.

É impensável dar ao Daesh a representação dos muçulmanos, que é exactamente o objectivo pretendido com estes crimes. Aliás, o mesmo se aplica à própria denominação “Estado Islâmico”, que é o que querem que os muçulmanos pensem que são. O Estado Islâmico, o Califado de Córdoba, foi, nos séculos X e XI , um momento de civilização, de cultura e de espiritualidade para os muçulmanos – tudo aquilo que, na sua violência bárbara, o Daesh nega. O Daesh é um movimento milenarista, sectário anti-xiita, como o demonstram os milhares de muçulmanos xiitas mortos no Iraque ou o atentado que, nesta mesma semana, matou dezenas de pessoas no Líbano.

Vivi em Paris 15 anos da minha vida – primeiro como exilado, nos anos 60 e 70; mais recentemente, entre 2007 e 2014. Paris é hoje uma cidade muito mais diversa e multicultural do que era nos anos 60. Foi e ainda é uma cidade refúgio, por tradição avessa ao sectarismo, aberta ao mundo e são essas características que é fundamental preservar depois destes crimes monstruosos. Sobretudo, é preciso terminar com o debate absurdo sobre a identidade alimentado por Zeimour, Finkelkraut, Houellbek e afins, que corrói a convivência comum.

Os criminosos que semearam o terror em Paris escolheram os seus alvos provavelmente apenas na convicção que eram mais fáceis e que poderiam resultar num maior número de mortos. Mas a verdade é que atingiram uma área da cidade com uma enorme diversidade, muito mais livre nos seus costumes e prazeres do que bairros mais conservadores. O Bataclan é a sala dos grandes espectáculos de música popular. Se calhar sem o saberem, alvejaram o que mais odeiam, na sua radicalização extrema, sectária e conservadora.

É na solidariedade intercultural, em que muitas das vitimas certamente acreditavam, que está a chave para a derrota do Daesh na Europa. É na unidade dos franceses, muçulmanos e não muçulmanos, que as intenções sectárias do Daesh fracassarão – uma unidade que pode e deve estender-se ao sul do Mediterrâneo.

Nada poderia ser mais favorável ao Daesh do que o triunfo do sectarismo e a retaliação contra os muçulmanos de França ou contra os refugiados, que fogem precisamente da mesma guerra que matou mais de 120 pessoas em Paris. Para vencer o Daesh, os europeus devem contrariar todos os que afirmam que os refugiados são uma ameaça, proclamando, pelo contrário, que são vítimas da mesma barbárie e que, em comum, é necessário criar um mundo euro-mediterrânico mais tolerante, acolhedor, justo e livre. Se assim for, se a razão triunfar, Paris continuará a ser uma cidade aberta, aquela em que me sinto no Mundo.

Director de Projectos no Arab Reform Initiative (ARI)

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