Para a Memorial, a repressão do Kremlin não é um filme novo

Mostraram ao mundo os crimes do regime soviético e continuaram a expor os abusos do poder. Agora, a Memorial regressa ao passado, com a extinção no horizonte.

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Cerimónia organizada pela Memorial em memória das vítimas da repressão soviética na cidade de Krasnoiarsk, na Sibéria Ilya Naymushin/Reuters

Na Praça Lubianka em Moscovo, outrora morada da sede do KGB, está desde 1990 uma grande pedra, sobre a qual é costume ver-se algumas flores caídas. Foram activistas da Memorial, o mais proeminente grupo de defesa dos direitos humanos russo, que trouxeram aquela pedra desde as distantes ilhas Solovetski, perdidas no Mar Branco, onde se localizava “a mãe do Gulag”, como descreveu o escritor dissidente Alexander Soljenitsine, – um dos maiores campos de trabalho ao serviço do regime soviético.

Quando realizou a jornada daquela pedra, a Memorial vivia os seus primeiros tempos e seguia a missão de expor os crimes perpetrados pelo regime prestes a cair, aproveitando a abertura promovida por Mikhail Gorbachev, a perestroika. Mais de duas décadas depois, o mesmo grupo é ele próprio alvo de perseguição política, correndo o sério risco de vir a fechar portas.

“Assim que Gorbachev deu a luz verde, em 1987, para que as pessoas pudessem investigar os crimes do comunismo e do [antigo líder soviético, Josef] Estaline, a Memorial conseguiu trabalhar numa escala muito maior”, explica a professora da Universidade de Amesterdão, Nanci Adler, em conversa telefónica com o PÚBLICO. A abertura dos arquivos da polícia política permitiu revelar o terror vivido durante décadas de opressão e o mundo, incluindo a própria Rússia, pôde finalmente saber o que se passava nos longínquos gulags. E a Memorial estava na linha da frente dos acontecimentos.

Nas suas fileiras contaram-se importantes dissidentes políticos como o físico nuclear e Prémio Nobel da Paz, Andrei Sakharov, entre outros. Os anos foram passando, mas a missão de um grupo que serviu originalmente como “mecanismo de justiça transicional” foi assumindo novos contornos.

“A Memorial desenvolveu-se e cresceu significativamente e, focando-se nos crimes do passado, também se concentrou nos crimes do presente por se ter tornado num vigilante tão importante”, diz-nos Adler, autora de vários livros sobre a organização. A sua acção centrou-se durante bastante tempo no conflito na Tchetchénia, para onde enviava equipas de investigação para apurar abusos e desaparecimentos de civis. Em 2009, o preço a pagar pela busca da verdade foi demasiado alto para Natalia Estemirova, raptada e encontrada morta com um tiro na cabeça e outro no peito, enquanto investigava as acções do exército russo. Após uma investigação altamente criticada, o governo russo acabou por concluir que a activista foi morta por guerrilheiros rebeldes.

Nesse mesmo ano, a organização recebe o Prémio Sakharov de Liberdade de Pensamento, atribuído pelo Parlamento Europeu. Apesar de nunca ter ganho Nobel da Paz, a Memorial é uma “forte candidata”, segundo Nanci Adler.

Mas agora a luta é apenas pela sobrevivência, num momento em que a organização está a “travar a sua luta mais séria” desde a fundação, nota Adler, que é também directora de pesquisa do Instituto de Estudos sobre Genocídio e Holocausto de Amesterdão.

O Ministério da Justiça russo pediu a “liquidação” da Memorial ao Supremo Tribunal, por causa das “violações graves e reiteradas” da Constituição e das leis do país, de acordo com o serviço de imprensa do ministério. Na base da argumentação do Kremlin estão problemas organizacionais apontados ao grupo, nomeadamente a sua “estrutura em guarda-chuva”, que agrupa cerca de 50 pequenas delegações de defesa de direitos humanos. “As autoridades querem que tudo funcione na Rússia de cima para baixo. E sabemos bem porquê: uma organização vertical é muito mais fácil de controlar”, observa a directora-executiva da Memorial, Elena Jemkova, citada pela AFP.

Para esta quinta-feira estava agendada a decisão do Supremo Tribunal, que optou por adiar para 17 de Dezembro, dando cerca de um mês para que a Memorial altere a sua organização estatutária.

O “problema organizacional” apontado pelas autoridades governamentais é apenas um pretexto para continuar a perseguição, segundo a leitura de Nanci Adler. “A intimidação à Memorial é parte da acção do Estado contra quem discorda e contra a mensagem que têm, que é tanto sobre o passado como sobre o presente. Aquilo que a Memorial vem dizendo não é propriamente aquilo que o Estado gostaria de mostrar de si próprio”, nota.

Em Julho, a organização foi registada, em conjunto com outras quatro ONG, como “agente do estrangeiro” – uma expressão com ecos da terminologia soviética. Esta classificação abrange os organismos que obtêm financiamento fora da Rússia e que desenvolvam uma “actividade política”.

A verdade é que o apoio internacional sempre foi basilar na actividade da Memorial, desde a sua fundação, muito apoiada por instituições como a norte-americana Ford Foundation. Nanci Adler reconhece mesmo que “a Memorial é mais popular internacionalmente do que a nível nacional”, que encontrou “muita oposição por parte da população”, que continua a olhar com alguma admiração os tempos do regime soviético. “No Dia da Vitória é muito fácil encontrar símbolos com Estaline. Parte disso é porque nunca houve uma condenação oficial, nem um julgamento, nem uma comissão de verdade”, explica a investigadora.

Actualmente é também fora de portas que vêm as maiores manifestações de indignação face à possibilidade de extinção da Memorial. O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, criticou a decisão “inaceitável e provavelmente destituída de uma clara justificação legal”.

Se a vontade do Kremlin for adiante, “muitas discussões importantes ficariam suspensas”, adverte Nanci Adler. No entanto, como organização de sobreviventes, a docente acredita que a Memorial pode sobreviver a mais este desafio. “Uma das coisas que aprendemos numa sociedade pós-repressiva é que o passado tem que ser algo que se possa olhar e confrontar. E não esquecer.”
 

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