Da Síria a Lampedusa, Francisco lembra ao mundo que “Deus é paz”

Civis apanhados nos conflitos, migrantes que morrem a tentar chegar à Europa, pobres e frágeis, todos estiveram na primeira mensagem de dia de Natal de Francisco.

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Franscisco falou "à cidade e ao mundo" Alessandro Bianchi/Reuters

Na sua primeira bênção urbi et orbi ("à cidade e ao mundo"), nove meses e meio depois de ter sido eleito, o Papa Francisco falou de guerras mais e menos esquecidas, do drama dos imigrantes que tentam chegar à Europa e dos “pobres, os marginalizados e os doentes”.

“Continuemos a rezar ao Senhor para que poupe ao amado povo sírio mais sofrimentos e para que as partes no conflito ponham fim à violência e garantam o acesso à ajuda humanitária”, disse o Papa argentino no balcão da basílica de S. Pedro onde se apresentou ao mundo no dia 13 de Março.

Francisco tem falado e rezado muito pelos sírios. Em Setembro, quando se pensou que haveria um ataque externo contra Bashar al-Assad, depois dos ataques com gás sarin que mataram perto de 1500 pessoas nos arredores de Damasco, o Papa esteve contra uma intervenção militar e defendeu uma solução negociada.

Na mesma altura, Rússia e Estados Unidos chegaram a acordo para a destruição do arsenal químico do regime e uma equipa de inspectores da ONU foi ao país identificar e desactivar essas armas (que ainda terão de ser destruídas). Alguns opositores perguntaram por que não tinha sido negociada também a entrada de ajuda, já que milhares de sírios estão em cidades cercadas pelo regime há muitos meses sem electridade ou acesso a alimentos. Por estes dias, há crianças a morrer de frio em várias cidades.

No resto do país, a guerra prossegue sem tréguas. Entre dia 15 e dia 24, diz o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, os bombardeamentos do regime mataram 410 pessoas, incluindo 117 crianças, na cidade de Alepo, no Norte. Dez dias de bombas que mataram, como sempre, muitos mais civis do que combatentes: destes mortos diz a ONG, 9 eram jihadistas estrangeiros e 30 rebeldes sírios da oposição.

“Senhor, dá a tua paz ao à Síria e ao mundo inteiro”, pediu o Papa, antes de recordar as guerras no Iraque, na República Democrática do Congo, no Sudão do Sul e o conflito entre israelitas e palestinianos.

Perseguidos em nome de Cristo
“Abençoa a Terra que escolheste para vir ao mundo e faz com que as negociações de paz entre israelitas e palestinianos tenham um final feliz”, disse. E depois: “Cura as feridas no amado Iraque, ainda golpeado por atentados frequentes”. Horas antes, 35 pessoas tinham morrido num ataque perto de uma igreja em Bagdad. Dois carros armadilhados visaram um mercado no bairro de Doura, um local frequentado por muçulmanos e cristãos.

A pensar nos iraquianos, mas também nos sírios ou nos nigerianos, o Papa pediu “a protecção de todos os que são perseguidos por causa do nome” de Cristo.

Como todos os anos e como fizeram outras papas antes, a mensagem do dia de Natal foi usada para lembrar vários conflitos. “Dá a paz à República Centro-Africana, tantas vezes esquecida pelos homens”, disse, numa mensagem transmitida por televisões do mundo inteiro. Milhares de pessoas morreram este mês nos confrontos que envolvem milícias cristãs unidas para combater os Séléka, maioritariamente muçulmanos; mais de 150 mil tornaram-se deslocadas em fuga da morte.

“Mas tu, Senhor, não esqueces ninguém”, disse Francisco. “E queres levar a paz também àquela terra esquecida, despedaçada por uma espiral de violência e de miséria, onde tantos estão sem casa, água e alimento, sem o mínimo para viver.”

Francisco pediu depois a Deus que favoreça “a concórdia no Sul do Sudão”, a mais nova nação do mundo, onde a violência explodiu há uma semana e o Presidente, Salva Kiir, acusa o antigo “número dois”, Riek Machar, de tentar um golpe de Estado. “Olha pela Nigéria, lacerada por contínuos ataques que não poupam os inocentes e os indefesos. Dá esperança e conforto aos deslocados e refugiados, especialmente no Corno de África e na República Democrática do Congo”, enumerou em seguida.

Acolhimento e ajuda para os imigrantes
Como em tantas ocasiões ao longo dos últimos meses, Francisco não esqueceu todos os que tentam chegar aos países do Sul da Europa, em fuga da fome e da guerra. “Faz, Senhor, com que os migrantes em busca de uma vida digna encontrem acolhimento e ajuda. Com que tragédias como aquelas a que assistimos este ano, com tantos mortos em Lampedusa, não aconteçam mais”, pediu o Papa, lembrando os 339 mortos de um só naufrágio em Outubro, ao largo da ilha italiana.

No início de Julho, Francisco escolheu Lampedusa para a sua primeira visita pastoral. Tinha um espinho no coração, explicou, e pediu perdão. “Habituámo-nos ao sofrimento dos outros. Não nos interessa”, quis dizer à Europa e aos europeus.

Têm-se sucedido protestos de imigrantes contra as condições em que estão alojados em Itália. Esta quarta-feira, o Governo esvaziou mesmo o centro de acolhimento de Lampedusa depois de um deputado do centro-esquerda se ter barricado no centro da ilha, prometendo permanecer no mesmo lugar até que os imigrantes fossem transferidos para outras instalações. As mesmas condições degradantes levaram quatro tunisinos e cinco marroquinos a coserem os lábios no Centro de Identificação e Expulsão de Roma, iniciando assim uma greve de fome.

Os últimos, os marginalizados
Francisco falou ainda do flagelo das crianças-soldado e do tráfico de seres humanos. “Menino de Belém, toca o coração de quantos estão envolvidos no tráfico de seres humanos para que se dêem conta da gravidade do seu crime contra a humanidade”, disse. “Quero a tua atenção também para os meninos que são raptados, feridos e mortos nos conflitos armados, e para todos os que são transformados em soldados, roubados da sua infância.”

Tal como na noite de Natal, Francisco guardou algumas palavras para “os pobres, os marginalizados, os doentes”, os mais frágeis. Quem foram os primeiros a receber a notícia do nascimento de Jesus, perguntara na sua primeira Missa do Galo. Os pastores, porque “entre os últimos, os marginalizados”, respondeu.

“Convido até os não crentes a desejarem a paz, o desejo que alarga o coração: todos unidos, ou com a oração ou com o desejo, mas todos pela paz”, pediu o Papa perante a multidão que encheu a Praça de S. Pedro no Vaticano, em Roma. “Deus é paz: vamos pedir-lhe que nos ajude a construi-la cada dia, na nossa vida, na nossa família, nas nossas cidades e nações, no mundo inteiro. Deixemo-nos comover com a bondade de Deus.”


 
 
 

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