Papa elogia reformas na Bolívia e é surpreendido com "crucifixo comunista"

Visita histórica é um sinal da aproximação entre o Governo boliviano e o Vaticano. Papa salienta "passos importantes" nas questões sociais e Evo Morales recebe-o "com felicidade e esperança".

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Evo Morales entrega ao Papa um crucifixo em forma de foice e martelo Osservatore Romano/Reuters
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Francisco sorriu, mas disse: "Isto não está certo" Osservatore Romano/Reuters

Sete anos depois de ter acusado a Igreja Católica de ser "um instrumento de subjugação", o Presidente da Bolívia, Evo Morales, recebeu o Papa Francisco num clima de confiança renovada e partilha de preocupações sociais, mas com um gesto que tem tudo para ser mais comentado do que a importância da visita em si – durante a recepção no palácio presidencial, em La Paz, Morales ofereceu a Francisco uma foice e martelo com um Cristo crucificado.

A fotografia que se tornou viral mostra o Papa com uma expressão de incredulidade quando o Presidente da Bolívia o surpreendeu com o polémico crucifixo. "Isso não está certo", disse o Papa, segundo a tradução da Catholic News Agency. Ainda assim, Francisco recebeu o "crucifixo comunista" – como foi imediatamente baptizado nas redes sociais –, mas com um sorriso que não escondeu algum incómodo.

Mais importante do que as ofertas, foram as palavras dos dois líderes. Num elogio ao Governo de Evo Morales, o Papa Francisco disse que foram dados "passos importantes" para "incluir amplos sectores na vida económica, social e política do país".

"Se a política for dominada pela especulação financeira, ou se a economia for governada apenas por um paradigma tecnocrático e utilitário preocupado apenas com o aumento da produção, não conseguiremos compreender, quanto mais resolver, os grandes problemas da humanidade", disse o Papa.

Em resposta, Morales declarou que o povo boliviano recebia agora Francisco "com felicidade e esperança", depois de "momentos na História" em que "a Igreja foi usada para subjugar e oprimir". "Damos-lhe as boas-vindas como representante máximo da Igreja Católica, e como apoiante da libertação dos nossos povos bolivianos", disse ainda Evo Morales.

Esta é a segunda paragem do Papa num périplo por três países da América Latina, que começou na segunda-feira no Equador e que acaba no domingo no Paraguai – em Setembro, Francisco regressará ao continente americano, para visitar Cuba e os Estados Unidos.

Chá com folhas de coca
Ainda antes da entrega do polémico presente, a visita do Papa à Bolívia já estava a ser mais falada por causa de uma curiosidade – segundo o repórter da estação norte-americana NBC News, uma assistente de bordo serviu ao líder da Igreja Católica um chá com uma mistura de folhas de coca, camomila e sementes de anis no voo para La Paz.

Apesar de o consumo e o cultivo serem proibidos em vários países, a folha de coca contém apenas uma quantidade mínima de cocaína, e faz parte da cultura dos povos nativos dos Andes há milhares de anos. O chá com folha de coca é usado em países como a Bolívia e o Peru como um leve estimulante (como o café em outras partes do mundo) mas também para reduzir os efeitos da falta de oxigénio em grandes altitudes – numa viagem para La Paz, uma cidade situada a cerca de quatro quilómetros de altitude, é natural que um homem de 78 anos a quem foi retirada parte de um pulmão aos 21 precise de toda a ajuda disponível.

Apesar da relevância dada ao "crucifixo comunista" e às folhas de coca, a visita papal à Bolívia é uma espécie de carimbo que confirma a aproximação entre o Governo boliviano e a hierarquia da Igreja Católica, que começou com a chegada ao Vaticano do Papa Francisco, em Março de 2013.

Antes disso, as relações do Governo de Morales com os líderes católicos do país eram muito tensas. O clima atingiu o ponto mais alto na segunda metade da década passada, quando se tornou evidente que a agenda política de La Paz chocava de frente com a influência do catolicismo em todo o país – de acordo com uma sondagem realizada em 2013 pela Latinobarómetro, 76% dos inquiridos dizem ser católicos, um valor semelhante ao registado na Argentina do Papa Francisco e 13 pontos percentuais acima do Brasil. Extrapolando para a população, sete dos nove milhões de bolivianos dizem seguir o catolicismo, embora só 39% admitam rezar e ir à missa regularmente.

A questão do aborto, por exemplo, só começou a ser mais debatida nos últimos anos, e a lei boliviana ainda criminaliza as mulheres que queiram interromper a gravidez, excepto nos casos de violação, rapto sem posterior casamento, incesto ou risco de vida para a mulher – mesmo assim, em qualquer destes casos era obrigatória uma autorização judicial, até 2014.

No ano passado, o Supremo Tribunal do país analisou uma queixa contra a criminalização do aborto, e acabou por decidir de uma forma que permitiu pequenas vitórias para ambos os lados da barricada – por um lado, manteve a criminalização para os casos não previstos na lei; por outro, deixou cair a obrigatoriedade de haver uma decisão judicial nos casos permitidos por lei.

À chegada à Bolívia, o Papa Francisco fez questão de sublinhar que esta aproximação entre o Governo e a Santa Sé só é possível se ambas as partes puxarem para o mesmo lado, sublinhado – e, ao mesmo tempo, pedindo o reconhecimento de Evo Morales – que o cristianismo "tem desempenhado um importante papel na construção da identidade do povo boliviano".

Um dos principais factores para esta aproximação é a agenda comum sobre o ambiente. No mês passado, o Papa apresentou uma encíclica dedicada ao assunto, pondo-se ao lado do consenso científico sobre as alterações climáticas e alertando para as consequências desse problema: "As alterações climáticas são um problema global, com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, e constituem o principal desafio da humanidade", escreveu. Em La Paz, o Papa elogiou a Constituição da Bolívia, por "reconhecer os direitos dos indivíduos, das minorias, e do ambiente natural".
 

   

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