“Os terroristas não utilizaram encriptação”

Markus Beckedahl, director do Neztpolitik.org, é um dos mais destacados jornalistas alemães especializados em questões como a privacidade digital e o direito à informação.

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Markus Beckedahl está em Lisboa para debater o tema DR

Markus Beckedahl, director do Neztpolitik.org, é um dos mais destacados jornalistas alemães especializados em questões como a privacidade digital e o direito à informação. Berlim investigou-o por suspeitas de traição, desencadeando uma tempestade política que levou à queda, em Agosto, do procurador-geral alemão Harald Range. Esta segunda-feira, pelas 19h, o repórter abre o ciclo de palestras Viver na Sociedade Digital do Goethe-Institut, em Lisboa.

PÚBLICO: Qual o estado do debate dos direitos digitais na era pós-Snowden?
Markus Beckedahl: A Internet é uma grande tecnologia, uma grande infraestrutura, mas descobrimos que muitos serviços secretos e empresas alteraram o comportamento da Internet de uma rede livre e aberta para o da infraestrutura mais controlada que já conhecemos. Desde o início das revelações de Edward Snowden, há um debate sobre se queremos aceitar isso ou se queremos mudar. Nós somos favoráveis a uma mudança dessa situação, exigindo mais comunicação encriptada e exigindo mais direitos humanos e mais direitos digitais.

Como se exige mais encriptação depois dos atentados em Paris, quando as autoridades e a imprensa nos dizem que esta auxilia aqueles que põem em causa a segurança colectiva?
Nós já nos perguntávamos quantos jornalistas iriam retransmitir a propaganda dos serviços secretos, que alega que a encriptação tinha auxiliado os terroristas a cometerem os atentados. Isto é puro spin. Neste momento é evidente que os terroristas não utilizaram encriptação para organizar as suas acções, e que estes terroristas já estavam identificados pelas autoridades. É um falso debate. Deveríamos antes debater se os serviços secretos agem correctamente ao espiar-nos a todos quando claramente não conseguem focar-se nos terroristas que estão já identificados e que cometem atentados. É sobre isso que temos de falar.

Numa Alemanha onde os dois grandes partidos do sistema estão coligados no poder, isto é um assunto mainstream ou está remetido para as franjas políticas e mediáticas?
É definitivamente um assunto mainstream, mas é também um assunto complexo. Nem todos os jornalistas sabem que a encriptação auxilia e protege o seu trabalho, por exemplo, no contacto com fontes, que não é possível ser feito anonimamente sem recorrer à encriptação. É um debate em que é necessário ter-se algum conhecimento técnico, e nem todos os políticos nem todos os jornalistas o têm. Mas penso que na Alemanha já estamos a ter um bom debate com as revelações de Snowden sobre a cibervigilância em massa que os nossos serviços secretos fizeram sobre os próprios cidadãos. Talvez a Alemanha seja mesmo um dos poucos países onde esse debate tem uma boa qualidade.

No entanto, a acusação de traição movida pela Procuradoria-Geral alemã contra o si e o seu colega Andre Meister foi interpretada unanimemente como uma tentativa de intimidação no âmbito deste debate.
A Procuradoria-Geral tentou acusar-nos de traição. Isto gerou um enorme debate público em que a maioria das pessoas ficou do nosso lado. Ficou claro que tínhamos apenas feito o nosso trabalho enquanto jornalistas e que havia uma ameaça à liberdade de imprensa. Os serviços secretos domésticos e a Procuradoria-Geral fracassaram totalmente nessa tentativa de intimidação. Continuamos a trabalhar e estamos hoje muito mais fortes.

O trabalho jornalístico em causa referia-se à constituição de uma unidade especial dos serviços secretos dedicada à monitorização das redes sociais. Tendo em conta que as redes têm sido uma ferramenta de comunicação e de propaganda para movimentos extremistas, estas devem ficar isentas de qualquer controlo?
O que nós questionámos foi se os nossos serviços secretos domésticos estariam a agir correctamente ao conduzir essa missão secretamente, e se não haveria várias dúvidas constitucionais em cima da mesa. Não houve qualquer debate sobre este assunto até ao momento em que publicámos o nosso trabalho, porque os documentos e os planos eram secretos. Com a sua publicação foi possível organizar um debate em que a sociedade pode agora discutir se tudo isso é ou não necessário, e isso é muito importante numa democracia.

Com a ubiquidade das redes sociais, dos smartphones e das suas aplicações, abre-se mão da privacidade de forma cada vez mais voluntária. Como se sensibiliza o público para os riscos?
Nós, jornalistas, precisamos de educar os nossos leitores no sentido da competência tecnológica, da literacia dos media e do pensamento crítico. São coisas que devíamos ter aprendido na escola, mas que ninguém nos ensinou. Temos de fornecer o background técnico e explicar o que acontece com os nossos dados. A imprensa deveria fazer muito mais. Toda a sociedade deveria fazê-lo, porque ninguém cresceu com a Internet e ninguém aprendeu a desenvolver uma literacia dos media nas escolas, e temos de fazê-lo agora.

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