Os refugiados não são migrantes económicos!

Argumentos simplistas só contribuem para o obscurecer e abrir novos problemas.

1. A reunião do Conselho de Ministros da Justiça e Assuntos Internos (JAI), do passado dia 14/04/2015, não deixou dúvidas a ninguém sobre as divisões e descoordenação europeia na crise dos refugiados. Paralelamente, nos últimos dias, assistimos, no discurso público e político, a uma mistura, feita deliberadamente ou por abordagem superficial do problema, entre refugiados e migrantes económicos.

É frequente ouvirmos, nos meios económicos e políticos, ligar a crise dos refugiados à demografia europeia, sugerindo que estes são uma solução para a falta de crescimento da economia e necessidade de mão-de-obra. Apesar das boas intenções subjacentes a esta argumentação — provavelmente vencer a resistência da opinião pública ao acolhimento de refugiados —, estamos perante uma abordagem, como mostraremos em seguida, que traz mais problemas do que soluções. Importa deixar bem claro: refugiados e migrantes económicos (imigrantes) são realidades diferentes, que devem ter um tratamento jurídico e político diferente. Os primeiros fogem da guerra e de perseguições políticas, religiosas, étnicas ou outras, as quais põem em causa a sua vida. Os segundos — os migrantes económicos —, deslocam-se à procura de uma vida melhor, devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, pobreza, ou à atracção exercida pela riqueza material europeia. Os primeiros devem ser acolhidos por razões humanitárias e com base em imperativos de ordem legal internacional — desde logo, a Convenção das Nações Unidas sobre o estatuto dos refugiados. Isso implica que o acolhimento deva ser feito da forma mais humanista possível. Implica, também, uma atitude ”cega", no sentido de ser não discriminatória, face à nacionalidade, à etnia, à religião, à idade, ao sexo, habilitações e competências académicas e profissionais, etc. Implica, por isso, um acolhimento de todos os que possam, apropriadamente, ser qualificados como refugiados enquanto persistirem as razões do asilo. Por princípio, este deverá ser um acolhimento tendencialmente transitório. Os segundos, os migrantes económicos, devem ser acolhidos por razões económicas, ou seja, em função das necessidades e capacidades de absorção de uma economia e do seu mercado de trabalho. Esta poderá ser de mão-de-obra qualificada, ou poderá ser de mão-de-obra sem qualificações. Se é mão-de-obra qualificada, por exemplo, será preciso ter ideia do que é necessário, em concreto: médicos, engenheiros, informáticos, ou técnicos de manutenção de equipamentos industriais? Por definição, não é uma mera política de “porta aberta” a todos.

2. Uma boa e adequada política migratória não pode, por isso, ser “cega” e neutral, no sentido em que o deve ser a política de acolhimento aos refugiados. É necessariamente "discriminatória", no sentido de poder privilegiar um certo perfil de pessoas em ligação com as já referidas necessidades empresariais e económicas. Por isso, usar argumentos económicos e demográficos para acolher refugiados é tendencialmente problemático. Pode, paradoxalmente, levar mesmo a resultados perversos. Um refugiado não tem de ser uma mais-valia de mão-de-obra, qualificada, ou não, nem um activo para sustentabilidade da segurança social, nem para qualquer outro argumento desse género. Ao argumentar-se dessa maneira a favor das vantagens económicas e demográficas acolhimento de refugiados, o que se está a fazer, de forma consciente ou inconsciente, é a transferir para estes o debate sobre a migração feita por motivações económicas. Naturalmente que atrás disso, porque as duas facetas estão intrinsecamente associadas, vão, também, os receios e resistências (legítimas, do ponto de vista democrático), da opinião pública europeia à imigração em massa, para os refugiados. O resultado pode muito bem ser aumentar, ainda mais, a resistência ao acolhimento. Este deverá ser feito, reitero, por razões humanitárias, nomeadamente em respeito dos compromissos internacionais, independentemente do seu valor económico e / ou demográfico. Para além do mais, dá um sinal errado aos que actuam nos circuitos migratórios ilegais. (Ver Der Spiegel, 7/09/2015, “Asylum's Dark Side: The Deadly Business of Human Smuggling” / O negócio mortífero do tráfico de seres humanos). Estimula-os a tentarem fazer passar migrantes económicos por refugiados — fazendo-os chegar, deliberadamente, indocumentados, ou instruindo-os, por exemplo, a fazer-se passar por nacionais de países onde normalmente é dado o estatuto de refugiado.

3. Por último, é relevante sublinhar que o argumento económico e demográfico, em si mesmo, é algo simplista, mesmo quando é usado de forma mais apropriada, no contexto do debate sobre as vantagens e/ou inconvenientes das migrações em massa. Nos últimos anos foi submetido a várias críticas que mostram uma realidade bastante mais complexa e matizada. (Ver, entre outros, o trabalho de Paul Collier, "Exodus — Immigration and Multiculturalism in 21st Century”, Allen Lane, 2013 / Êxodo — Imigração e Multiculturalismo no Século XXI). Entre as mais comummente formuladas, vale a pena aqui relembrar algumas das que têm mais substância e merecem reflexão. A visão puramente económica das migrações tende a ignorar os custos sociais nos salários, nomeadamente a pressão para descida destes na faixa mais baixa do espectro salarial. Apresenta isso como ganhos de competitividade empresarial... A ocorrer, naturalmente, afecta os já mais pobres e desfavorecidos nas sociedades de acolhimento. Ignora o seu impacto no Estado social de uma forma abrangente, nomeadamente no acréscimo potencial com infra-estruturas sociais (habitação, escolas, etc.) e de competição “predadora” com o proletariado autóctone pelas prestações sociais. Ignora que o número de dependentes a cargo — ou seja, sem uma função económica produtiva e sem uma contribuição efectiva para as prestações sociais —, tende a ser mais elevado quando a origem dos migrantes são países de baixo rendimento. Ignora os impactos do reagrupamento familiar (perfeitamente compreensível do ponto de vista de Direitos Humanos), mas que pode aumentar significativamente o número inicial da população acolhida e a pressão nas infra-estruturas sociais. Ignora ainda, que há tendencial tensão entre uma (grande) diversidade e uma (generosa) solidariedade. Numa sociedade que se torna muito diversa há o risco de desidentificação e quebras de solidariedade entre os diferentes grupos. A verificar-se esta situação, só dará argumentos aos partidários do capitalismo neoliberal para atacarem, ainda mais, o Estado social. Só uma estratégia coerente e compreensiva, a nível europeu, poderá trazer esperança fundada na resolução de um problema complexo e multifacetado como a crise dos refugiados. Argumentos simplistas só contribuem para o obscurecer e abrir novos problemas.

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