“Os qataris estão no paraíso”, mas os migrantes queixam-se do inferno

As organizações de defesa dos direitos humanos já denunciaram as condições de escravatura moderna a que estão sujeitos milhares de trabalhadores que constroem o sonho do país mais rico per capita do planeta.

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Os campos ficam no fim de uma inóspita estrada no deserto, depois de quilómetros de fábricas desoladas e depósitos de entulho. A terra, as paredes e o céu são todos do mesmo cinzento-pálido. O pó entranha-se em todo o lado – na garganta, no nariz e nos olhos.

A menos de 30 quilómetros do centro da capital do Qatar, Doha, é aqui que muitos dos milhares de trabalhadores migrantes que trabalham na construção da resplandecente cidade vêm dormir.

Qatar, o país mais rico per capita do planeta, está dividido em dois mundos: um é o retrato das ambições desta monarquia do Golfo Pérsico – uma linha do horizonte decorada com imponentes arranha-céus reluzentes, universidades topo de gama e museus elegante, uma cidade em desenvolvimento acelerado que se prepara para receber o campeonato do mundo de futebol em 2022; a outra realidade está aqui, entre os beliches apertados dos trabalhadores migrantes do Qatar. É aqui que vivem aqueles que constroem, mudam e conservam a vida mágica do Qatar. E é um mundo sem qataris.

“Que qatari é que vai falar connosco?”, pergunta um condutor paquistanês de 38 anos que leva e traz trabalhadores dos estaleiros das obras. “Os capatazes não falam connosco. Por que é que um qatari o faria?”

Nos 14 anos que este homem já viveu neste país nunca interagiu com um qatari. Nunca visitou nenhum dos hotéis luxuosos ou centros comerciais que os migrantes construíram e também nunca se passeou pela marginal junto ao mar ou tirou um único dia de folga para visitar um dos muitos museus que estão a fazer este país famoso.

O Qatar tem o maior rácio de migrantes por cidadão do mundo: os seus 250 mil cidadãos nacionais correspondem apenas a 12% da população. A vasta maioria da força laboral do Qatar veio do Sudeste Asiático, muitas vezes pagando centenas ou milhares de dólares para garantir um emprego através de agências de recrutamento nos seus países de origem, referem tanto trabalhadores como grupos de defesa dos direitos humanos.

Mas quando chegam aqui, os trabalhadores dizem que as empresas para as quais foram contratados lhes confiscam os passaportes, os ameaçam com multas e reduções salariais por danos de equipamento ou por dias de baixa e lhes ordenam que trabalhem 12 a 15 horas por dia sob um sol abrasador e com temperaturas que podem ultrapassar os 40 graus.

Em entrevistas, dezenas de trabalhadores – todos se queixam de condições de trabalho que mais se assemelham a escravatura e pediram para não ser identificados por medo de serem despedidos – dizem que dormem enlatados, dez em cada quarto, em campos com condições mínimas. Os mesmos referem que os seus salários médios rondam os 3 mil euros anuais.

O seu quotidiano marca um nítido contraste com o de um qatari de classe média, que tem acesso a cuidados de saúde gratuitos, mas também educação e electricidade gratuitas, e acesso garantido a empregos bem remunerados no sector público, gasolina subsidiada, empréstimos de habitação sem juros e bolsas para estudar no estrangeiro.

A oportunidade do Mundial
Analistas políticos e alguns responsáveis governamentais referem que a atenção internacional que o país está a receber depois de ter vencido a candidatura à organização do Mundial de 2022 representa uma oportunidade única para esta minúscula monarquia pôr a casa em ordem.

Nasser al-Khater, um porta-voz para o Supremo Comité Qatar 2022 (Q22), considerou a possibilidade do país organizar um mundial de futebol como “um catalisador para mudança no Qatar e na região”. “O Q22 leva muito a sério os direitos humanos dos trabalhadores” e o comité está a finalizar um conjunto de padrões para a segurança dos trabalhadores “alinhados com as melhores práticas internacionais – e que vão ter que se cumpridos, por obrigação contratual, pelas empresas de construção que trabalham em projectos do Q22”, disse al-Khater, numa resposta por email.

O Qatar está a construir estádios e uma linha de metro e está a renovar uma boa parte das infra-estruturas de Doha para se preparar para o fluxo de visitantes internacionais. “Esperamos que a melhoria das condições de trabalho no Qatar seja uma das heranças sociais mais importantes do Campeonato Mundial de Futebol de 2022”, afirma Nasser al-Khater

Mas, até agora, o país não está a ficar bem na "fotografia". Uma investigação do jornal britânico Guardian, publicada em Setembro, revelou que dezenas de nepaleses tinham morrido a trabalhar e que milhares de outros enfrentam abusos que configuram uma situação de escravatura moderna. A maior parte das mortes de trabalhadores está relacionada com paragens cardíacas, notava o relatório, um sintoma que os especialistas médicos dizem ser resultado de insolações que ficaram por tratar.

Já em Novembro, foi a vez da Amnistia Internacional apelar à FIFA para “enviar uma forte mensagem pública de que não irá tolerar abusos dos direitos humanos nos projectos de construção relacionados com o mundial de futebol”.

No seu relatório anual, publicado no início do ano, a Human Rights Watch já dizia que, apesar das promessas iniciais de Doha para fazer reformas laborais depois de ter vencido a candidatura ao Mundial de 2022, os progressos tinham sido mínimos.

A Kafala que os amarra
“Se as coisas continuarem como estão, o Campeonato do Mundo de Futebol pode transformar o Qatar num inferno de exploração e miséria para os trabalhadores que o construíram”, disse Jan Egeland, director para a Europa da Human Rights Watch.

Analistas estrangeiros que seguem de perto as monarquias do Golfo dizem que alguns membros da família real podem estar a levar a sério as reformas laborais, mas enfrentam um muro de obstáculos domésticos. Segundo Justin Gengler, um investigador da Universidade do Qatar, a maioria dos qataris considera que o sistema da kafala (todos os trabalhadores migrantes precisam de ter um empregador que fique responsável pela sua presença no país e esta é a principal causa dos abusos laborais) deve ser ainda mais severo – e não menos.

O sistema da kafala amarra os trabalhadores a um contrato com as empresas que o receberam e torna virtualmente impossível ao trabalhador viajar, lutar por melhores condições ou procurar um novo emprego.

François Crepeau, relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos dos migrantes, pediu ao Qatar para abolir o sistema da kafala, argumentando que o mecanismo era uma fonte de abusos laborais. Crepeau descreveu o campo-dormitório que visitou como “miserável”.

Em entrevistas, qataris, trabalhadores migrantes e outros estrangeiros revelam uma mentalidade racista e classista tão enraizada na sociedade do Qatar que torna difícil aos qataris estabelecer qualquer tipo de empatia com os homens e as mulheres que contrataram para construir o seu país.

Um empresário qatari, que liderou vários projectos de infra-estruturas em Doha, minimizou as queixas dos trabalhadores, considerando que são mais fruto da origem de quem as faz do que das condições de trabalho. “Os paquistaneses e os indianos são trabalhadores incansáveis, por isso não se queixam”, diz a coberto do anonimato. Mas trabalhadores de outras nacionalidades, explica, “são todos políticos, e facilmente vão às suas embaixadas, queixarem-se disto e daquilo”.

Nos campos-dormitórios, os trabalhadores queixam-se de que as suas vidas são tão insuportáveis que só sonham em fugir. “Odeio trabalhar aqui”, disse um motorista indiano que sustenta uma extensa família com o dinheiro que manda para casa. “Estou aqui porque sou forçado a estar aqui.” Em seis anos, o condutor diz que só teve direito a duas viagens à Índia. “A última vez que lá fui, casei-me”, conta. Passou um mês com a sua mulher antes de voltar para o Qatar, de onde sabia que só poderia sair dois anos depois.

Outros homens juntam-se à volta do indiano, na escuridão da noite, e partilham histórias de frustração, exaustão e solidão. Os trabalhadores chegam em autocarros, de rostos fechados e sombrios, agarrados aos seus capacetes laranja das obras. Alguns têm coletes reflectores, outros fatos-macacos. Mas alguns trajam reflexos das suas origens distantes – os sarongs do Bangladesh ou os salwarkameez (túnica e calças largas) do Paquistão

Depois de um jantar de roti, arroz e legumes cozidos nos refeitórios, o campo adormece. Às 4h00 da manhã estes homens acordam para um dia igual ao que passou e ao dia que virá a seguir. “Fomos lançados numa selva, muito longe da cidade”, disse um trabalhador da construção originário do Bangladesh. Os qataris, esses, sim, “estão no paraíso”.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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