Os marmanjos de Charlie

Dez dias depois dos terríveis acontecimentos de Paris, o mundo continua desorientado. A barafunda fez com que, antes que qualquer tipo de organização pudesse ser estabelecida, toda a gente desatasse à balda a afirmar que é Charlie. De repente, qualquer pessoa achou-se no direito de se sentir chocada e de se solidarizar com uma causa. Assim, sem nenhum critério e sem pedir permissão. Desejo colocar ordem nesta bandalheira.

Lembro que se está a lidar com valores civilizacionais importantes e há que ter cuidado com quem se quer apropriar do Charlie e da liberdade de expressão. Toda a gente deve ter liberdade de expressão para poder dizer o que quer, mas nem toda a gente deve poder dizer o quer sobre a liberdade de expressão.

Há pessoas a dizerem-se Charlie que não são Charlie. São charlitães. Daí sugerir a criação de uma Ordem dos Charlies, para regular e limitar o acesso à autodenominação de Charlie e decidir, caso a caso e mediante a aplicação de um teste, se estamos perante um Charlie verdadeiro ou um Charlie de contrafacção. Não queremos abastardar o ser-se Charlie. Necessitamos de uma política de selecção escrupulosa antes de franquear a admissão. Com numerus clausus, obviamente. Não é Charlie quem quer.

À volta do bastonário, constituir-se-á um Conselho Deontológico para supervisionar a aplicação do rigoroso código de conduta dos Charlies, a chamada Charlia. Os conselheiros serão os guarda-costas da ética, responsáveis por defender o legado de Charlie. Os marmanjos de Charlie.

Como condições de acesso exige-se: já ter sido impedido de se expressar; nunca ter coarctado a liberdade de expressão; ter um historial nas redes sociais de, pelo menos, cinco likes em movimentos de defesa da liberdade de expressão; ter as vacinas em dia; duas fotografias tipo passe.

Alguns exemplos práticos de quem pode ou não ser Charlie:

1) Artista que vê o seu programa de televisão recusado e a quem o director da estação diz: “Não é um programa que nos interesse.” No entanto, o artista tem imensos amigos no Facebook que lhe dizem que a ideia do programa é genial. Ele pode dizer: “Je suis Charlie!”

2) Criança a quem a mãe proíbe de falar até acabar a sopa, que já está fria. Não sendo tão maçador como falecer ou ser-lhe recusado um programa de televisão, é ainda assim uma arreliadora limitação à liberdade de expressão. E leva a criança a fazer beicinho. Como é um grau de chatice menor, essa criança é um Charlie-mirim. Pode dizer: “Je Suis Charlie Bit my Finger”.

3) Charb. Por um lado, era realmente Charlie. Por outro, como director, deixava de fora muitos cartunes. “Mas não havia espaço para todos!”, dirão uns. “Eram desenhos muito fraquinhos!”, dirão os mesmos, mas fazendo outra voz. Desculpas. Se Charb fosse mesmo paladino da liberdade de expressão, em vez de uma pequena revista semanal, obrigava-se a publicar calhamaços bidiários, para não deixar nada de fora. Lamento, mas o Charlie do Charlie não é Charlie.

4) Eu próprio, que me considero Charlie e que pugno pela liberdade de expressão, mas que ao mesmo tempo impeço outros de se dizerem Charlie, acabo assim por não poder ser Charlie. Tenho pena. Mas regras são regras.

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