Os gregos

Não me parece haver incoerência quando Atenas diz em voz alta aquilo que nós ciciamos, que a troika é um desastre.

Podem-se acusar os homens do Syriza de vedetismo, deslumbramento pelo poder, protagonismo excessivo, mas nunca de falta de coragem, de falta de competência, de incoerência. Estou à vontade. Tenho amigos e amigas no moribundo PASOK e na Nova Democracia. Reconheço o difícil progresso grego desde a recuperação da independência e unidade, moeda de troca como a usaram Estaline e Churchill, a submissão total aos EUA e NATO, a disputa eterna com a Turquia, a ditadura dos coronéis de 1967 a 1973, a resistência, a libertação, a perda de metade de Chipre, o acesso apressado à União Europeia em 1981, cinco anos antes de Portugal e Espanha, a impreparação do Estado para entrar na moeda única, as imensas vigarices nas contas, bem oleadas por alguns que hoje mandam na Europa financeira.

Reencontrei Atenas no início da crise, quando a vida ainda era como hoje a nossa, se discutia mansamente a forma de retirar os automóveis do Estado aos deputados (uma viatura para cada quatro deputados) quando, a uma pergunta directa, o Ministro das Finanças Constantinopolou – o mesmo que um ano depois apagaria o nome da família e amigos da lista Lagarde - me respondeu com impecáveis argumentos técnicos e políticos que a Grécia jamais encararia a saída do Euro. Conhecera antes a Grécia dos académicos brilhantes, formados nas melhores escolas do Reino Unido e dos EUA, desejosos de enfrentar o desenvolvimento assimétrico e a corrupção, orgulhosos da sua nação tantas vezes maltratada pela história como cruzamento de raças, culturas, religiões, navegadores, estradas e portos, com séculos de independência, depois submetida a dominações: romana, bárbara, cristã, turca e por fim ocidental. Orgulhosos e competentes. Académicos tão brilhantes como folgazões e também corajosos a confrontar na OCDE o padrinho americano, ou na OMS os luteranos do Norte, como por vezes assisti com temor e estupefação. Sim, acusemos os políticos gregos de tudo, menos de falta de coragem, impreparação, ou incoerência.

A coragem não lhes faltou para gerarem um movimento de escassa história, certamente prenhe de oportunistas, mas disposto a tudo, mesmo a desaparecer no curto prazo, se a derrota ou a rotina o vencerem. Ou, pior ainda, se o Povo os trocar pela extrema-direita, quando e se chegar a grande prova de fogo que seria a saída do Euro. A competência é hoje reconhecida pela imprensa financeira, pela capacidade de prepararem o capital para o que iria acontecer, pelo recrutamento de bons e respeitados académicos. A coerência, de que os seus adversários tanto gostam de descrer, acentuando manobras táticas com se de cedências e traições se tratasse. A moral sempre foi a arma preferida da direita contra os que não dobram no essencial. Não sei se este arquétipo se vai confirmar. Ninguém o sabe. Mas não aceito que sejam apodados de impreparação, oportunismo e experimentalismo por aqueles que tudo ultrapassaram em falta de preparação e de nervo para gerir a Europa; de falta de coragem de quem arrisca tudo - família, carreiras internacionais garantidas, tranquilidade - para safar o grande navio dos baixios onde encalhou. Não me parece haver incoerência quando dizem em voz alta aquilo que nós ciciamos, que a Troika é um desastre, que a doutrina económica prevalente está furada, que afinal são os grandes que lucram com o empobrecimento dos periféricos. Se assim fosse não enchiam a praça do seu parlamento todas as semanas, não teriam o apoio de 75% dos cidadãos, veriam os vermes a sair da terra onde mergulharam, depois de anos de má governação da Nova Democracia e de um intervalo desmoralizante de governo PASOK e de uma posterior e irrelevante coligação.

Gente prestes a tudo perder, mas que tem orgulho em resistir. Que sem o pretender, está a mudar a relação de forças, a questionar a humilhação internacional, a contestar a lógica suicida do ajustamento pelo emagrecimento. Ninguém sabe prever o desfecho, ninguém nos garante que a Grécia não saia em breve do Euro, que não mergulhe numa inflação de 50%, que tenha de cessar pagamentos de parte da dívida externa, que não venha a recorrer a amigos pouco recomendáveis ou a potências de sorriso enganador. Ninguém garante que uma rotura não seja, no curto prazo, pior que a morte lenta a que a obrigam.

Como dizia Emiliano Zapata, mais vale morrer de pé que viver de joelhos. Pulsão suicida? Desespero de causa colectivo? Não haverá meio-termo? Sim, certamente haverá, se houver inteligência em vez de intransigência, se houver visão rasgada em vez de fixação míope, pensar no futuro e no mundo em vez de se olhar apenas o presente, e o que a nossa vista alcance do campanário. Eis por que não entendo a posição dos guarda-livros de vão de escada, com escritas de discutíveis contas. Ou a presença, primeiro agnóstica, depois irónica e mais tarde pseudo-deferente, com que Passos nos tem brindado em declarações avulsas e mutantes. É nos grandes momentos que se conhecem os grandes (e pequenos) homens. Estamos à beira de um desses momentos. Não o reconhecer ou tratar a história como rotina diária é pura irresponsabilidade.

Opinão do convidado: João Ferreira da Cruz, economista

Mais Europa
Na última Cimeira informal deveriam ter sido retomadas conversações sobre o “roteiro e o calendário” para completar a União Económica e Monetária (UEM). A urgência de agir, proposta pelos quatro presidentes (Rompuy, Barroso, Juncker e Draghi) decorre já de 2012. Desta feita, Juncker limitou-se a generalidades sobre mecanismos que fortaleçam as políticas económicas, de coordenação e solidariedade para relançar o debate. Apesar dos progressos na união bancária e na supervisão das políticas económicas e sociais nacionais, os defeitos da UEM continuam a ameaçar o euro e o mercado único. Mecanismos de estabilização financeira baseados nas responsabilidades nacionais não se compatibilizam com a natureza integradora da UEM. A interacção entre as fragilidades do Estado e a vulnerabilidade do sector bancário, comprovam-no. A solução para a crise da Grécia, também humanitária, é absolutamente decisiva para a União. Não podem ser escamoteados os riscos estratégicos do Gr-exit da zona euro. A crise da dívida soberana é consequência, não a causa do problema, das insuficiências na arquitectura da zona euro que não previa que economias menos competitivas pudessem ser esmagadas pelo mercado único e pela globalização. Na Grécia, de início, consentiu-se na especulação dos mercados, o endividamento agravou-se. Quando surgiram os mecanismos de protecção, o diktat da troika foi de tal ordem severo que a abrupta redução do défice público teve como contrapartida a devastação económica e a crise social, com mais endividamento. O compromisso terá que chegar. Um passo importante no aprofundamento da UEM. Criar uma função da UEM para a absorção de choques específicos dos países, com responsabilização política e quadros integrados para a economia, orçamento e financiamento, tal como constava do roteiro e calendário dos quatro presidentes, em 2012.

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