Os europeus estão a forçar uma mudança nas políticas dos seus governos amedrontados

António Guterres, o alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, assiste, esperançado, à impressionante onda de solidariedade e sentido de urgência que cresce entre os cidadãos da Europa perante a tragédia dos refugiados, prevendo que isso vai ter consequência nas decisões da União Europeia

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Guterres critica a falta de visão estratégica da Europa Denis Balibouse/Reuters

Há meia dúzia de dias, António Guterres dirigia palavras duríssimas à forma como a União europeia estava a lidar – a não lidar – com a crise dos refugiados, ao fim de seis meses de tragédia contínua. Hoje, o Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados vê na reacção das sociedades civis e na opinião pública de praticamente todos os países europeus uma força que acabará por mudar a política europeia.

Está a enfrentar a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra, com meios que muitas vezes são escassos tendo em conta a dimensão da tragédia. A quatro meses do fim do seu segundo mandato não tem mãos a medir. A União Europeia, diz ele, tem de enfrentar esta emergência mas tem também de se dotar uma visão estratégica.

Tem usado ultimamente palavras bastante duras em relação à forma como a União Europeia tem lidado com esta tremenda vaga migratória. Acredita que as suas palavras estão a ser ouvidas?
Creio que a influência das minhas palavras será limitada mas também creio que há, neste momento, um fenómeno novo na Europa que me leva a ter esperança de que terá uma profunda influências nas decisões da União Europeia e, nomeadamente, as que o Conselho de Ministros do Interior terá de tomar em breve. Estamos a assistir à emergência e ao desenvolvimento de uma extraordinária reacção positiva da sociedade civil, dos cidadãos anónimos, da opinião pública que, em toda a Europa, porventura, contrariando as expectativas de Governos amedrontados com as manifestações xenófobas a que fomos assistindo nos últimos meses. Os governos têm hoje políticas mais restritivas do que aquilo que parece ser a vontade dos seus povos. A minha convicção é que isso levá-los-á a compreender a necessidade de uma resposta de emergência efectiva e solidaria da União Europeia, que esteja à escala do problema, em vez das medidas mais ou menos incrementais que, até agora, foram definidas e que, ainda por cima, ao não serem sequer aplicadas, conduziram a uma situação de verdadeiro caos numa grande parte da Europa

Acha que a força de uma fotografia é responsável por essa mudança?
Creio que não é apenas uma fotografia. É sobretudo a persistência com que a comunicação social tem reflectido esta tragédia. Mas o drama da família curda em que estava a pensar teve, de facto, um impacte gigantesco, quer nos meios de comunicação tradicionais, quer nas redes sociais. Esta consciência crescente que se foi gerando, acabou por levar as opiniões públicas a considerarem que é absolutamente inaceitável que a Europa, que é também depositária de um conjunto de valores de humanismo e de defesa dos Direitos Humanos, esteja a falhar historicamente em relação a este desafio com o qual está confrontada. Há a percepção de que a Europa tem obrigação de inverter o caminho, perante quem está a viver esta tragédia, oferecendo-lhes a protecção que esperam dela. De resto, têm direito a ela pela própria lei internacional, para além de uma visão humanista do mundo que é a sua.

Surpreendeu-o a liderança da chanceler alemã?
Não posso dizer que me tenha surpreendido, mas creio que é importante prestar homenagem não só o papel da chanceler mas dos dirigentes políticos alemães. Há que dizer que tiveram a coragem de afirmar com grande coerência uma abertura em relação aos refugiados que procuram a Alemanha como solução para a sua tragédia ainda antes desta onda que as opiniões públicas agora abraçam. E também a firmeza que demonstraram na condenação, sem quaisquer reservas, das manifestações xenófobas que ocorreram em alguns sectores da sociedade alemã, embora claramente minoritários e marginais.

E esperava esta reacção negativa dos países de Visegrado, sobretudo a Hungria?
No ACNUR, nós temos uma relação de grande afecto com o povo húngaro que, naturalmente, nos faz ver com particular angústia a situação actual naquele país. A primeira grande operação do ACNUR, quando terminou de lidar com as consequências da II Guerra, foi exactamente na crise dos refugiados húngaros [provocada pela Revolta de Budapeste contra Moscovo, em 1956, que levou á intervenção militar da União Soviética]. Nessa altura, milhares de húngaros foram recebidos na Áustria e na Jugoslávia de portas abertas e de uma forma admirável. Em quatro meses, 140 mil húngaros foram relocalizados, metade em outros países europeus e outra metade fora da Europa, numa grande demonstração de solidariedade. A minha esperança é que o povo húngaro, que tem manifestado grandes demonstrações de solidariedade e apoio em relação aos refugiados bloqueados no interior da Hungria, acabe por obrigar o seu governo a mudar de posição do país, alinhando-o com o que espero que venha a ser a da União Europeia.

É preciso que todos reconheçam que é necessária uma resposta de emergência para garantir as condições de recepção, mobilizando as várias agências europeias de protecção civil e de ajuda humanitária, para que haja os recursos humanos e financeiros necessários para garantir centros de recepção e de assistência, que façam com que as pessoas que chegam às ilhas gregas, à Hungria ou à Itália se sintam bem acolhidas, que vejam as suas necessidades básicas atendidas e que, ao mesmo tempo, se possa fazer um registo sistemático dessas pessoas, determinando as que precisam da protecção da lei internacional. Em relação a essas, é preciso um mecanismo de recolocação no interior da Europa.

A primeira estimativa que fizemos é de cerca de 200 mil no mesmo prazo fixado pelo Conselho Europeu quando aprovou as primeiras medidas da agenda das migrações (dois anos), mas de uma forma completamente solidária, envolvendo os países europeus sem qualquer excepção e, simultaneamente, aumentando o volume das oportunidade de acesso legal à Europa através da reinstalação. Como faz a Alemanha, com cerca de 30 mil casos a partir do Líbano, da Jordânia e da Turquia, graças a uma política de vistos mais flexível e mais aberta, de bolsas de estudo para jovens, de um programa mais eficaz de reunificação familiar. Isso é fundamental para que muita gente deixe de recorrer a estes grupos de gangsters que têm colocado a sua vida em perigo de uma forma totalmente repulsiva.

Esses 200 mil são suficientes quando há, por exemplo, um milhão de sírios na Jordânia?
Não vejo que todos os sírios que estão nos países limítrofes venham para a Europa. Estou a falar das tendências que constatamos neste momento e nas previsões que podem ser feitas neste momento, no que respeita às medidas de recepção de emergência. Como disse, tem de haver outras formas de os sírios terem acesso à Europa, mas também aos países do Golfo e a outros países que devem fazer muito mais do que têm feito por uma população que está condenada a um conflito que parece interminável. Mas é preciso responder também a uma degradação das suas condições de vida nos países de acolhimento - Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque - por falta de apoio humanitário e financeiro a esses países, por parte das organizações internacionais.

Tem tido os meios necessários para esta vaga que já disse ser a maior desde a II Guerra?
Infelizmente não. A resposta humanitária aos refugiados sírios está, neste momento, financiada a 41% e, pior ainda, no caso dos refugiados que estão na Turquia, a apenas 21%. E, como se sabe, é pela Turquia que que está a ocorrer o fluxo maior de refugiados, predominantemente sírios e alguns outros, embora estejamos a enfrentar sobretudo uma crise de refugiados sírios, para a qual, de resto, nós avisámos muitas vezes. O que se passa no Mediterrâneo Central é também muito importante. Houve tragédias terríveis, e ainda bem que foram reforçados os meios de salvamento [com a Frontex], mas os fluxos não são muito diferentes do que eram no ano passado. Na Grécia, há hoje seis vezes mais de refugiados do que havia no ano passado, que depois atravessam os Balcãs para chegar à União Europeia. É aí que encontramos agora o pico da crise e a mais clara incapacidade de resposta urgente e de falta de visão estratégica da Europa. E, como vimos, quando alguns países procuram criar medidas restritivas, isso acaba por criar situações de bloqueio e de tensão que são também insustentáveis.

Acredita que a Europa acabará por entender o mundo em que vive e que precisa de se preparar para ele?
Hoje, como já disse, os cidadãos europeus estão a perceber de uma forma eloquente esta nova realidade. Em toda a parte, incluindo em Portugal, onde já foi criada uma plataforma envolvendo dezenas de organizações, ou com famílias que constantemente oferecem as suas casas. Quando assistimos a uma reacção tão clara e tão forte por parte das populações europeias, creio ser inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os dirigentes políticos europeus compreendam que têm, também eles, de fazer alguma coisa. Aliás, na linha que tem sido defendida pela própria chanceler alemã e outros dirigentes políticos, espero que todos compreendam que é preciso mudar de rumo, tendo uma resposta eficaz à emergência e uma política consistente para a eliminação das causas profundas desta vaga de refugiados. Tão importante como responder às necessidades dramáticas dos que estão em fuga de conflitos terríveis é encontrar políticas que possam permitir mais capacidade de prevenção e de resolução desses conflitos e formas de cooperação económica que tenham em conta a mobilidade humana e que façam com que, cada vez mais, as migrações sejam uma opção e não um imperativo de sobrevivência.

A imprensa internacional tem referido o fim do seu mandato como se fosse uma decisão sua ou uma surpresa.
Não é surpresa nenhuma. Estou a concluir dois mandatos no ACNUR, o que é a norma geral de funcionamento das Nações Unidas. Excepcionalmente, o meu segundo foi prolongado seis meses, exactamente para assegurar uma transição eficaz, como é norma das Nações Unidas. Chegou a altura de outra pessoa assumir no final do ano o papel de Alto-comissário.

O que dá ideia é que esta crise monumental que está a enfrentar não devia levar a mudanças.
Este prolongamento do meu segundo mandato já foi definido pela Assembleia Geral da ONU em Setembro do ano passado. Como vê, tudo isto está previsto há imenso tempo e decorre em termos absolutamente normais.

 
 

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