Os Bálticos e a Europa: a propósito da “neo-correcção política”

Hoje em dia, poucos são aqueles que têm a coragem de, no espaço público, defender abertamente um aprofundamento da integração europeia.

1. São muitos – são mesmo cada vez mais – os que criticam e até diabolizam o processo de integração europeia e são outros tantos os que põem em causa os benefícios desta experiência política e constitucional. Precisamente ao invés do que aqui ontem, numa observação lateral, escrevia João Carlos Espada, “politicamente correcto” – hoje – é criticar o processo de integração europeia. Politicamente correcto é, com efeito, assumir a posição que ele próprio assume e que, justiça lhe seja feita, sempre assumiu (mesmo nos tempos em que ela não era “politicamente correcta”). Hoje em dia, na verdade, poucos são aqueles que têm a coragem de, no espaço público, defender abertamente um aprofundamento da integração e de fazer a apologia de uma via federal para a União Europeia (UE). Há até quem mime os europeístas com o epíteto de anti-patrióticos… Por muito que isso pese a João Carlos Espada, a sua reserva não pode ser mais “politicamente correcta”, pois a “neo-correcção política” aponta justamente para o apelo a uma reversão e regressão no caminho já percorrido. É a tal posição de compreensão para com o celebrado “desconforto britânico” e para com a narrativa dos académicos da Alternativa para a Alemanha ou até de alguma complacência para com o perigosíssimo populismo do UKIP e quejandos. Mas a todos esses que – com argumentos que, valha a verdade, merecem ponderação e justificam uma análise séria e isenta – põem cada vez mais reticências à consolidação da integração europeia, recomendo, neste exacto e preciso momento, uma visita ao Báltico. Uma visita atenta aos três Estados bálticos, os únicos três países da UE que fizeram parte da União Soviética. E, como é óbvio, que o façam não com o propósito de admirar o encanto medieval de Tallin, o charme da arte nova de Riga ou a admirável paisagem barroca de Vilnius. Tudo isso (e muito mais) merece uma visita detida, mas o Fugas, suplemento de viagens do PÚBLICO, é capaz de ser mais útil do que esta crónica. 

2. Se alguém se sentar num bar de Tallin a falar com estónios ou se almoçar nas barraquinhas da romaria de Agosto da “senhora branca” (um fantasma), na cidade balnear de Haapsalu, rapidamente descobrirá o que é o sentido da decência de um povo. Depois de séculos de dominação – dinamarquesa, sueca, polaca, dos cavaleiros teutónicos, germânica, russa –, depois de quase cem anos do início da russificação intervalado por três duros anos de germanização, há um povo que o pode ser. Depois de séculos de servidão e de décadas de enorme pobreza, hoje há desenvolvimento, há dignidade. O país persiste pobre, mas os patamares económicos e sociais de dignidade e de decência não têm qualquer paralelo na sua história. São incomparavelmente melhores. Repito: incomparavelmente. E a liberdade, a abertura, o cosmopolitismo, o acesso à cultura seguem o mesmo padrão. Esta lufada de liberdade e de cultura e este surto de progresso e de desenvolvimento, se falados com quem ali vive, só têm um garante: a UE, a Europa. Demais, persiste uma tensão densa e forte com a comunidade russa, embora muito ocultada e escondida.

Se alguém visitar uma galeria ou um antiquário em Riga ou se der um passeio nas praias da outrora glamorosa Jurmala, logo se dará conta de que há gente que redescobriu o gosto de viver e que encontrou o seu lugar na comunidade dos povos. E, num ápice, ouvirá falar na UE, no papel da Europa e na esperança de que esta possa travar a Rússia e evitar o regresso da russificação. Na verdade, nas ruas de Riga, especialmente nos últimos dois anos, a comunidade russa despertou. E voltou a fazer-se notar no centro da cidade, não apenas pelo peso demográfico, mas pela presença ostensiva dos russos locais e de um turismo endinheirado. A tensão que dantes, tal como na Estónia, era subliminar e que, aqui ou ali, até fazia suspeitar alguma opressão sobre a minoria russa, é agora manifesta e evidente. O orgulho russo, altamente estimulado pela política do Kremlin e pelo estilo musculado de Putin, é exibido sem complexos, sem pruridos nem pudores. E nas conversas, em ruas pejadas de turistas, depois de anos de profunda crise, agora que a economia vibra e lateja, a crise ucraniana faz temer e faz tremer.

E se descermos a Vilnius ou a Kaunas, na milenar Lituânia – a única com pergaminhos de quem chegou a ser rei, grão-duque e senhor da sua história –, não se encontram com a mesma facilidade russos autóctones. Mas o turismo de grande porte russo e bielorusso impõe a sua visibilidade possante e apossada. Em nenhum dos outros países, é tão claro o receio da ameaça russa e há tanta devoção à Europa e à NATO. No palácio presidencial, a bandeira nacional flutua entre a bandeira da UE e a bandeira da NATO. Todos sentem que o retorno da Lituânia à sua tradição histórica só foi possível através da Europa e das suas instituições. E todos estão em vigília e em alerta diante da tragédia ucraniana.

3. Nos três países bálticos, o euro – essa moeda que para al escola da “neo-correcção política” quase parece maldita – tem sido abraçado com enorme entusiasmo e expectativa. A Estónia entrou no euro em plena crise das dívidas soberanas (2011), a Letónia aderiu este ano, depois de concluir um duríssimo programa de ajustamento, e a Lituânia adopta-lo-á em 1 de Janeiro próximo. É interessante verificar que, apesar da enorme ligação à Dinamarca e à Suécia, muito relutantes quanto à aceitação da moeda única, nenhum dos três pequenos países bálticos quis ficar fora do euro. É que para eles a UE e a moeda única não são apenas um projecto económico. São muito mais do que isso. E se precisamos de caldear algum sentimento ou ressentimento anti-russo, não podemos deixar de nos inspirar nestas lições de europeísmo. A Europa que construímos é a da liberdade e a do progresso destes povos. É também isso que nos pode ensinar Tusk. 

SIM e NÃO

SIM. Donald Tusk. A ascensão do primeiro-ministro polaco a presidente do Conselho Europeu tem um enorme significado. Integra o leste, acolhe a zona não euro, dá um sinal à Rússia. E dá à UE um grande político.

NÃO. Vladimir Putin. A ideia de criar um Estado no leste da Ucrânia, ainda que através de um modelo ambíguo de região soberana, é um passo grave na espiral do conflito. Demasiado grave. 

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