Oposição vence dois terços do parlamento, mas o chavismo está longe de derrotado

O controlo dos bolivarianos sobre o aparelho do Estado é tal que mesmo a grande maioria no parlamento pode acabar manietada pelo "oficialismo". As instituições estão em guerra aberta.

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A Assembleia Nacional, pintada num muro. A oposição tem agora o máximo poder sobre o órgão legislativo do Estado. Luis Robayo/AFP

A contagem de votos nas legislativas venezuelanas foi publicada a conta-gotas e demorou três dias a validar a vitória estrondosa da aliança de partidos de oposição ao regime bolivariano. Os candidatos da chamada Mesa da Unidade Democrática (MUD) desdobraram-se nesse tempo em emissões de rádio e televisão, dizendo que a maioria de dois terços do parlamento estava garantida e que era inútil ao aparelho chavista tentar demorar ou manipular os resultados. O órgão máximo das eleições deu-lhes razão apenas na noite de terça-feira: a oposição elegeu 112 deputados na Assembleia Nacional, contando já os três assentos reservados à população indígena, que concorreu com ela. O Partido Socialista Unido (PSUV) de Hugo Chávez e do seu sucessor, Nicolás Maduro, não passou dos 55 deputados.

O regime bolivariano perdeu pela primeira vez o controlo do parlamento desde que Chávez subiu ao poder, em 1999, e pela segunda vez um sufrágio desde que o falecido líder venezuelano não conseguiu fazer aprovar em referendo a sua reforma constitucional de 2007. O comandante disse então que a oposição conseguira uma “victoria de mierda”. Mas agora o sucesso da MUD é de outra magnitude. A MUD venceu dois terços da Assembleia Nacional, uma maioria que lhe permite alterar a Constituição, apontar e destituir altos-cargos e aprovar leis orgânicas. Ou seja: o poder de desmantelar ao fim de 16 anos o controlo do regime bolivariano sobre a máquina de Estado.

Os opositores dizem que não é isso que querem fazer. “Essa é a matriz de opinião que o Governo procura criar, ao dizer que esta é uma assembleia vingativa. Esta é uma assembleia para que no país impere a justiça. A justiça é inimiga da vingança”, disse ao El País um dos líderes da oposição e o candidato derrotado nas presidenciais de 2013, Henrique Capriles. É uma questão de linguagem. Capriles admite, sim, que uma das prioridades da MUD é fazer uma “mudança institucional”. “A mudança no Tribunal Supremo de Justiça é urgente.”

Não será tarefa fácil. A maioria de dois terços é poderosa, mas não omnipotente. Há uma série de contrapesos institucionais criados pelo "chavismo" que Maduro pode accionar de maneira a anular a oposição no parlamento. Controlar o Supremo é essencial para que isso aconteça e o regime bolivariano começou já a movimentar-se para se assegurar que os magistrados continuam do seu lado – algo inegável, visto que nos últimos nove anos e mais de 40 mil casos, nem por uma vez o máximo tribunal da Venezuela se pronunciou contra o Governo.

Maduro pode vetar ou propor alterações a leis aprovadas no parlamento, mas a maioria qualificada da oposição pode anular-lhe o veto. Não acontece o mesmo em casos de julgamentos de inconstitucionalidade do Supremo. Espera-se que esta seja a grande arma do “oficialismo” nos próximos anos para se manter vivo. Os socialistas começaram já a blindar o Supremo com figuras leais a Maduro: treze juízes que acabariam o seu mandato no final de 2016 jubilaram-se antecipadamente, o que ainda dá tempo à maioria socialista no parlamento de aprovar magistrados do seu agrado. Têm de o fazer até ao final do seu mandato, no dia 15 de Dezembro. “Temos margem de tempo para ditar leis que protejam este povo e assegurem margem de manobra ao Presidente”, disse esta semana o deputado “oficialista”, José Ávila. Não está sequer fora da mesa a possibilidade dos actuais deputados aprovarem poderes extraordinários a Maduro para que este possa promulgar leis nos próximos seis ou 12 meses.

Guerra aberta

O chavismo está bem enquistado na máquina do Estado e longe de ser derrotado. Na teoria, uma maioria de dois terços no parlamento dá à oposição poder para destituir cada um dos 32 juízes no Supremo Tribunal da Venezuela. Mas a Constituição é clara ao dizer que isto só pode acontecer em caso de “faltas graves” atribuídas aos magistrados. Quem decide isto é um aglomerado de órgãos criado em 99 por Chávez: “O Poder do Cidadão”. Fazem parte o Ministério Público, a Procuradoria, o Tribunal de Contas, uma instituição chamada Conselho da Moral e a figura do Defensor do Povo. As duas últimas posições são dominadas por Tarek William Saab, figura muito próxima de Chávez e membro do PSUV.

“A Assembleia Nacional não tem poderes omnímodos nem suprainstitucionais para estar a despachar, despedir e destituir membros de outros poderes públicos”, disse Saab, depois das eleições, elogiando a postura de Maduro ao aceitar os resultados. Se os deputados que tomarem posse a 5 de Janeiro o quiserem destituir, que pensem duas vezes. Precisam do apoio do Supremo para isso.

Passado um primeiro momento de resposta branda, o regime começa a cerrar fileiras e Nicolás Maduro a endurecer o discurso. “Impuseram-se os maus, ganharam os maus, ganharam como ganham os maus, com a mentira e com o engano, com a oferta enganosa”, disse o Presidente venezuelano na sua emissão televisiva semanal. E quanto à primeira grande bandeira da oposição, a de aprovar uma amnistia que liberte os presos políticos como Leopoldo López, Maduro já prometeu que não passará por ele. “Podem-me enviar mil leis, mas os assassinos de um povo têm que ser julgados e têm que pagar”, disse. 

O Presidente insistiu em recordar que foi Chávez quem o designou como seu sucessor. Quem votou contra o PSUV, diz, pôs em risco o seu plano para o país, que vive a pior crise económica e social da sua história moderna. “Vocês votaram contra vocês mesmos”, afirmou Maduro no seu programa televisivo. “Eu queria construir 500 mil vivendas no próximo ano, entregar 100 mil táxis comprados à China, mas agora tenho dúvidas de que o possa fazer com uma assembleia dominada pelo fascismo; eu pedi-vos o vosso apoio e vocês não mo deram.”

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