ONU em Lesbos: uma oportunidade desperdiçada

O secretário-geral da ONU desperdiçou oportunidade em Lesbos de alertar para o custo humano do acordo sombrio da UE sobre os refugiados.

O sofrimento dos quase 8.500 homens, mulheres e crianças encurralados nas ilhas gregas é tão desesperado que compeliu a uma visita do principal diplomata do mundo. A visita de “solidariedade” do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, a Lesbos, no passado sábado, 18 de Junho, voltou a centrar as atenções na desastrosa realidade dos refugiados e migrantes enfiados em campos e a dormir ao relento, enquanto incansáveis voluntários fazem todos os esforços para manter à tona as frágeis esperança e saúde daquelas pessoas.

Chegaram aos milhares, em fuga da guerra e da repressão, em busca de segurança e de uma vida melhor na Europa. Em vez disso, e no que se deve a pouco mais do que um timing infeliz, veem-se agora enredados no meio de um vergonhoso negócio entre a União Europeia (UE) e a Turquia. Presos numa situação desastrosa e em condições calamitosas às portas do continente europeu, estão imersos numa ansiedade crescente sobre o vazio do seu futuro.

Os líderes da UE deviam ter vergonha por a visita de Ban Ki-moon ser necessária. A presença do secretário-geral da ONU em Lesbos diz muito sobre as falhas trágicas do fracassado acordo sobre migrações que a UE e a Turquia firmaram há três meses com grande fanfarra.

O comissário europeu para as Migrações, Dimitris Avramopoulos, sustentou num relatório de avaliação dos progressos, a 15 de Junho, que o acordo está no rumo certo e a produzir resultados. O principal deles: a acentuada diminuição nos fluxos de refugiados para a Europa através da Grécia, que constitui um dos declarados objectivos desde que o acordo entrou em efeito a 20 de março. Para já, tudo bem, no que toca às estatísticas.

Mas estas estatísticas distorcem uma realidade mais profunda. A UE continua a manobrar o acordo com base numa perigosa premissa fantasista. Fazer regressar requerentes de asilo à Turquia baseia-se na falsa pretensão de que aquele é um país “seguro” para acolher as pessoas. E a única prova aparente apresentada é a Turquia e a Europa dizerem-no.

Tão débeis garantias podem até soar convincentes a responsáveis sentados às suas secretárias em Bruxelas e em outras capitais europeias, ou a líderes aos quais foi mostrada apressadamente uma versão muito editada dos campos de refugiados na Turquia. Ou talvez estejam voluntariamente a fechar os olhos à verdade do que se passa no terreno. De qualquer forma, o resultado final tem sido o esmagamento das esperanças e dos direitos humanos de milhares de refugiados encurralados nas ilhas gregas, que temem o que está por vir.

Só muito recentemente conheci Hani. Antigo estudante de Economia, de 31 anos, é um dos muitos sírios que estão em risco iminente de serem forçados a regressar à Turquia. Chegou a Chios a 20 de março, no dia em que o acordo entrou em vigor. Má sorte: um dia antes e, quem sabe, poderia ter evitado este pesadelo. Ao fim de três meses, continua sem saída, a viver em condições terríveis, à espera de novidades sobre o seu requerimento de asilo. Entretanto, os rumores abundam, tantos com promessas como com ameaças. Os traficantes andam atrás do pouco dinheiro que ele ainda tem e a violência eclode frequentemente, pois as pessoas estão cada vez mais desesperadas. No dia em que o conheci, Hani disse-me que a ideia de poder ser mandado de volta para a Turquia lhe “gela o coração”.

Não é o único. Ahmad, engenheiro, que fugiu com a família da Síria, contou-me que na Turquia viu os familiares serem agredidos e vítimas de abusos bem à frente dele, apenas por serem sírios. No início deste ano, a irmã e os filhos foram obrigados a regressar da Turquia para a Síria, disse-me ainda. E uma vez mais, a mera menção à Turquia fá-lo arrepiar-se.

É imoral forçar pessoas como Hani e famílias como a de Ahmad a viverem mergulhadas no medo e na ansiedade. É ilegal fazer refugiados voltarem para trás para a Turquia – como vários comités de recurso em Atenas já o apontaram. E, mesmo assim, dois refugiados sírios que estão atualmente detidos em Lesbos podem a qualquer momento ser os primeiros forçados a regressar à Turquia contra a sua vontade, desde que o acordo entrou em vigor. Entretanto, três outros requerentes de asilo que enfrentam a possibilidade de serem deportados, apresentaram os seus casos ao Tribunal de Justiça da União Europeia, argumentando que um regresso forçado nos termos do acordo firmado entre a UE e a Turquia viola a legislação da própria UE.

As investigações feitas pela Amnistia Internacional apuraram provas credíveis de que em numerosas ocasiões, entre os finais de 2015 e o início de 2016, centenas e potencialmente milhares de requerentes de asilo e de refugiados na Turquia foram obrigados a voltar ao Afeganistão, ao Iraque e à Síria. Tal constitui uma flagrante violação da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951. Responsáveis turcos sublinham, e bem, que o país acolhe mais refugiados do que qualquer outro. É também verdade que estas pessoas vivem em condições chocantes e não têm nenhuma possibilidade de obter o estatuto completo de refugiados. Esta é uma realidade que a UE não pode ignorar.

E fazer de conta que a atual baixa no número de chegadas à Europa será sustentável é outra falácia. Levantar a ponte levadiça da Fortaleza Europa tem apenas aumentado o custo humano, com as pessoas a encetarem rotas cada vez mais perigosas. Além de que faz o jogo das redes criminosas de tráfico humano que a UE se comprometeu a combater.

Em vez de mudar de rumo, os líderes da UE estão a expandir o paradigma em que assenta o negócio feito com a Turquia. Os planos da UE em cooperar de forma mais estreita com a Líbia nos fluxos migratórios arriscam alimentar os já galopantes maus-tratos e detenções por tempo indeterminado e em condições horríveis em que milhares de refugiados e migrantes se encontram naquele país. Com a crise global de refugiados sem mostrar qualquer sinal de diminuir, é mais do que chegada a hora de acabar com estes negócios sujos pela raiz.

O comissário Avramopoulos e outros responsáveis da UE muito disseram nesta última semana, como é costume fazerem, sobre a necessidade de existirem rotas seguras e legais para os refugiados chegarem à Europa. Mas o acordo UE/Turquia e as suas sequelas não são a forma de o conseguir.

Em vez de transferir para países terceiros as suas responsabilidades de protecção dos refugiados, a UE tem de encontrar soluções verdadeiras e duradouras. Entre elas a efectiva reinstalação de refugiados da Turquia na Europa, através de vias legais e seguras, assim como a recolocação em outros países europeus de milhares de refugiados que se encontram actualmente na Grécia.

Tal como Papa Francisco, e outros antes, também o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, viu em primeira mão cenas de sofrimento humano no centro de detenção de Moria, em Lesbos. E a destruição de uma vasta parte das instalações do campo, num incêndio que deflagrou durante confrontos no início de Junho, ilustra o enorme desespero daqueles que ali vivem. Ban Ki-moon deveria ter sido inequívoco em dizer que o acordo UE/Turquia tem sido uma clara e inaceitável causa de muito deste desespero.

Muitos já apontaram que o acordo UE/Turquia está a desmoronar-se e poderá colapsar. Sejam quais forem as razões para o seu potencial fim, é importante que os líderes da UE reconheçam que desde o início que foi imoral e ilegal. E o novo paradigma que estão a tentar construir não pode ser permitido – fazer acordos ilegais para obter os “resultados” desejados não é a forma de tratar estes assuntos.

A Europa pode e tem de dar o exemplo aos países ricos do mundo inteiro para que partilhem a responsabilidade de proteger os refugiados. Em Lesbos e em Atenas, o secretário-geral das Nações Unidas falou da admirável solidariedade mostrada pelos habitantes e outros voluntários na ilha e por todo o lado na Grécia, assim como apontou a necessidade de partilhar a responsabilidade pelos refugiados. Frisou ainda, e correctamente, que a detenção de requerentes de asilo e de migrantes não é nunca a solução. Mas, desperdiçou uma oportunidade de ouro: a de se fazer ouvir contra o vergonhoso acordo UE/Turquia e instar a UE e os países-membros a honrarem as suas obrigações internacionais, pois qualquer coisa menos do que isso é um fracasso moral e legal.

Investigador da Amnistia Internacional sobre Refugiados e Migrantes

Sugerir correcção
Ler 1 comentários