Obama: regresso ao futuro

Como prova a situação da Rússia, de Cuba ou do Brasil, a economia é um factor fundamental na distribuição do poder mundial. E é essa, porventura, uma das maiores vitórias de Obama.

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1.Bastou pouco mais de um mês após as eleições intercalares que deram aos republicanos o domínio das duas câmaras do Congresso, para que Barack Obama anunciasse, por palavras e por actos, que o seu mandato ainda não acabou e que tenciona aproveitar o ano que lhe resta para pôr de pé boa parte da agenda política que anunciou quando foi eleito Presidente da primeira vez. Quem apareceu na sexta-feira na conferência de imprensa de fim de ano, antes de partir para ao Hawai, foi alguém muito diferente do Presidente cabisbaixo e cansado de alguns meses atrás, que levou muita gente a dizer que a sua presidência tinha acabado. É preciso refazer as contas. “Ele não tem nada a perder”, disse Zbigniew Brzezinski. “ Pode voltar a ser igual a si próprio.”

A mais emblemática das suas iniciativas internacionais foi, naturalmente, o inesperado anúncio do restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba, abrindo as portas para o levantamento de um embargo que, como ele próprio disse, durou 50 anos e não serviu de nada. Os republicanos, a comunidade cubana e veteranos da Baía dos Porcos (uma armadilha que os serviços secretos prepararam para JFK logo no início do seu mandato e que correu muito mal) protestaram. O Congresso vai arrastar os pés. Mas se alguém quer perceber mesmo esta história, basta olhar os festejos nas ruas de Havana para celebrar por antecipação uma vida mais fácil. A forma como Raúl Castro geriu a fase final do processo, que estava a ser negociado há 18 meses em completo sigilo, foi igualmente significativa: o seu discurso teve pouco de retórica revolucionária e bastante de cooperação. O método foi mais ou menos o mesmo que Obama utilizou em relação ao Irão, outra das suas iniciativas de enorme importância que, mesmo que ainda sem um sucesso garantido, mantém o regime de Teerão sentado à mesa das negociações.

Nos dois casos, Obama estendeu a mão aos inimigos, como anunciou que faria no seu primeiro discurso de posse. Aconteceu no Irão e volta a acontecer em Cuba. Neste último caso, o Presidente pode contar com um Papa sul-americano a todos os títulos excepcional e uma história de 40 anos da Igreja contra o embargo americano. Cuba é um país católico. Basta ouvir a descrição de Obama de um dos telefonemas que manteve com Castro para se perceber que o seu método resultou em cheio. Depois de estar ao telefone durante quinze minutos sem parar de falar, pediu desculpa pelo seu monólogo ao seu homólogo. A resposta veio rápida: “Não se preocupo Senhor Presidente. Ainda é um jovem, ainda tem muito tempo para bater o recorde de Fidel, que uma vez falou durante sete horas seguidas.” Ficou resolvido o mistério do longo cumprimento de Obama a Raul Castro durante a homenagem a Mandela em Joanesburgo.

A longa mensagem do Presidente relativamente a Cuba, insistindo em castelhano que “somos todos americanos”, tem um alcance maior e apanhou muitos líderes regionais de surpresa. Cuba dava jeito quando as iniciativas americanas não eram bem-vindas. A cimeira das Américas que vai realizar-se vem 2015 será um lugar mais aprazível para o Presidente americano. Antes de Cuba, Obama conseguiu surpreender toda a gente quando anunciou em Pequim, ao lado de Xi Jinping, um acordo entre os dois países para reduzir as emissões de CO2. As alterações climáticas estiveram sempre na sua agenda política.

2. Claro que Obama ainda tem uma agenda pesadíssima num mundo cada vez mais caótico, e a sua política não foi suficientemente eficaz nalguns problemas cruciais no Médio Oriente, primeiro no combate ao regime de Damasco que ceifou milhares de vidas, e agora para conter uma nova estirpe do fundamentalismo islâmico, particularmente bárbara que já ceifou milhares de vidas. Com as pedras do xadrez a moverem-se todas aos mesmo tempo na região, Obama levou tempo a perceber que a intervenção militar (mesmo que recorrendo à força aérea e às forças especiais americanas) contra o Estado Islâmico acabaria por ser indispensável.

A Rússia também regressou na forma de ameaça à segurança europeia, exigindo uma resposta suficientemente firme para mostrar que Putin não pode alterar fronteiras pela força sem pagar um preço por isso. Conseguiu uma frente unida com os aliados europeus que já ninguém esperava, dadas as divisões europeias. Mas também aqui, o Presidente deixou sempre uma porta aberta, desde que Putin aceite uma solução política. Na cimeira da NATO em Lisboa (2010), com Dmitri Medvedev a “substituir” Putin até ao seu terceiro mandato, as coisas correram bem. Com o regresso de Putin tudo mudou radicalmente. E com a queda abrupta do preço do petróleo, somada aos efeitos das sanções aplicadas pelos EUA e pela Europa, os últimos dias têm sido terríveis para Moscovo. O problema é que a imprevisibilidade é a característica número um do comportamento do Presidente russo. Disse aos russos para não se preocuparam porque a crise ia durar apenas dois anos e que resultava de uma conspiração entre os EUA e a Arábia Saudita. Mas os russos estão preocupados e agem em conformidade. “As pessoas estão a fazer fila durante a noite para trocarem os rublos por dólares e comprarem qualquer coisa que possa manter o seu valor”, diz Bill Browder, da Hermitage Foundation em Moscovo. Tem de haver uma estratégia conjunta (entre Washington e Berlim) para não exagerar na dose e permitir, mesmo que não seja fácil, que Putin consiga salvar a face.

3. Mas, como prova a situação da Rússia, de Cuba ou do Brasil, a economia é um factor fundamental na distribuição do poder mundial. E é essa, porventura, uma das maiores vitórias de Obama, com repercussão doméstica e internacional. Há bem pouco tempo, as economias emergentes davam a economia americana (e o poder que nela assenta) como em declínio inevitável. Tomaram algumas decisões partindo desse princípio. Enganaram-se rotundamente.

O Telegraph resume esta reviravolta, na pena de um dos seus colunistas, Allister Heath. “Habituámo-nos nos últimos anos a uma narrativa deprimente: a economia global fez avanços significativos, apesar da turbulência criada pela crise financeira, mas quase todo o progresso coube aos mercados emergentes, enquanto as economias ricas estagnavam”. Em 2015, a “psicologia” da economia global vai mudar radicalmente. A previsão para o crescimento global será de 2,4 por cento. “A grande diferença é que os países desenvolvidos vão contribuir com 1,9 por cento, mais do que os 1,6 por cento em 2014, enquanto as economias em desenvolvimento vão desacelerar de 4,2 para 4,1”. Isto resume-se de outra maneira: os EUA voltam a ser o motor da economia mundial, graças ao seu gigantesco mercado. O mundo está dependente das decisões que a Reserva Federal vai tomar nos próximos tempos, nomeadamente sobre a subida das taxas de juro, que terá um efeito enorme nas economias emergentes.

4. A nível interno, Obama já recorreu à sua prerrogativa constitucional para neutralizar a oposição republicana à reforma das leis de imigração, poupando a expulsão de alguns milhares de imigrantes. Não tem que se preocupar com a reforma da saúde porque o processo de aplicação já foi demasiado longe para poder voltar para trás. Esta será uma conquista inapagável do seu primeiro mandato. Outros antes dele tentaram e não conseguiram. Vai insistir na reforma tributária. Ainda não conseguiu fechar Guantánamo, embora o número de prisioneiros seja muito reduzido. O debate sobre o relatório da tortura vai colocar em confronto duas visões distintas do poder americano. E não vale a pena à Europa apontar o dedo porque a América levou meia dúzia de anos para reconhecer o problema, enquanto a França levou 40 anos para admitir a tortura na Argélia, durante a guerra de libertação.

“Muitos esperavam que, nestes anos finais, Obama fosse obrigado a dançar a música dos seus adversários”, diz o Financial Times. “Pelo contrário, ele pode ainda construir para si próprio um legado decente”. O mundo sairia beneficiado. 

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